
A cientista, investigadora e professora catedrática na Universidade Nova de Lisboa mostra-no o prato que costuma fazer no Natal.
"Desde pequena que passo o Natal na aldeia dos meus pais, a Louriceira, em Alcanena. É uma tradição que guardo com enorme carinho: ali o tempo abranda, regressamos à simplicidade das coisas, sentimos a família mais perto e o coração mais cheio. Longe do ritmo da cidade, o Natal ganha outra profundidade.
E, como em todas as boas tradições, há sabores que nunca podem faltar. Na nossa mesa, o prato principal é sempre o cabrito assado, preparado por mim com a preciosa ajuda da minha tia Ivone, a verdadeira guardiã da escolha do cabrito perfeito. Curiosamente, não sou grande apreciadora deste prato, mas cozinho-o com imenso gosto porque é o preferido da família.
A preparação começa na véspera, antes da Missa do Galo. O cabrito é arranjado e envolvido numa marinada especial, um dos segredos da receita. Misturam-se as três gorduras (azeite, banha e margarina), às quais se juntam colorau, pimentão doce, muito alho, cebola picada, louro, sal, piripiri, mistura de pimentas e vinho tinto, quase sempre do Alentejo. Envolvem-se bem todas as partes do cabrito e deixa-se repousar durante toda a noite.
Na manhã seguinte, acende-se o forno de lenha, a segunda etapa essencial desta tradição. E aqui entra um elemento muito especial: a Kika, a cadela fiel da minha tia, que faz sempre questão de a acompanhar nesta missão. Corre de um lado para o outro, vigia, observa, como se fosse a chefe da operação, e só descansa quando o forno está no ponto certo. A minha tia, mestra absoluta do forno, conhece o calor da lenha como poucos, e apenas quando tudo está impecável é que os tabuleiros seguem lá para dentro, com as batatas a acompanhar. O cabrito assa lentamente e, ao longo do tempo, vamos regando com vinho para garantir que a carne se mantém macia. No final, sai tostadinho, perfumado e irresistível.
À mesa, juntam-se as batatas assadas no forno de lenha e um esparregado bem cremoso. Tudo isto pede um bom vinho, cá por casa andamos numa fase de monocastas e, felizmente, Portugal oferece-nos uma diversidade e qualidade que são um verdadeiro privilégio. Muitas vezes penso como é bom viver num país onde o melhor está tão perto.
A cozinha é também o meu lugar de verdade. Talvez porque ali tudo se apura: o sabor, o tempo, a paciência, e até a justiça. Num mundo onde às vezes surgem histórias mal temperadas, interpretações apressadas e ruído desnecessário, aprendi que o importante é permanecer fiel ao nosso próprio sabor. Na cozinha, ao contrário de certos espaços públicos, os ingredientes não mentem: cada gesto deixa marca, e o resultado revela sempre a verdade que pusemos nele.
Cozinhar, para mim, é muito mais do que um ritual: é um gesto de amor, uma forma de terapia e, acima de tudo, é ciência em estado puro. Cada prato resulta de uma sequência de reações químicas e transformações físicas que dão origem a novos sabores, texturas e aromas. A cozinha é um laboratório doméstico onde a criatividade se encontra com o conhecimento. É por isso que tenho um prazer tão profundo em estar ali; é onde encontro inspiração e serenidade.
Na parede da minha cozinha tenho uma frase que me acompanha sempre:
"O tempero da vida depende de quem a tempera.
Que nunca nos falte esse tempero."
