"A vida como ela é" é um espaço de opinião quinzenal assinado pela escritora Margarida Rebelo Pinto
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Mulheres com passado gostam de homens com futuro. Por vezes dou comigo a imaginar que foi o que a escritora Lou Andreas-Salomé pensou quando conheceu o jovem poeta Rilke. Ele era solteiro, ela casada, ele com 21 anos e ela com 36. Lou foi uma mulher ímpar na sua época. Inteligente, sedutora e de forte personalidade, recebia nos seus salões artistas e intelectuais, alimentando paixões, platónicas ou talvez não. E não foram nem poucos nem pouco notáveis aqueles que sucumbiram aos seus encantos de fêmea culta e inteligente: Nietzsche apaixonou-se quando a jovem tinha apenas 21 anos e pediu-a em casamento, pedido que foi recusado, e mais tarde Freud, com quem manteve uma relação de amizade, e quem sabe algo mais, durante cerca de 25 anos. Pelo meio, um caso fogoso, arrebatador e inesquecível com o jovem Rainer Maria, para quem ela foi o grande amor e a musa de eleição.
Quais os segredos da filha de um general russo de ascendência francesa para seduzir ao longo da vida três personalidades tão distintas e marcantes? Dotada de uma beleza exótica, com um olhar penetrante e lábios carnudos, conquistou sobretudo pela sua inteligência arguta e pela curiosidade que demonstrava pelo talento ou intelecto destes três "amigos" como a eles gostava de se referir, pois era casada, embora vagamente, já que o casamento nunca terá sido consumado. Depois de um período de convivência, durante o qual deixou temporariamente o marido para viajar com Rilke, Lou cansou-se de tanta intensidade e sobretudo das profundas alterações de humor que Rainer sofria, quem sabe, agudizadas pela paixão desenfreada que por ela desenvolveu. Quando a onda da paixão amainou, a musa, já com estatuto de semideusa por continuar a ser a sua mentora, manteve uma correspondência com o poeta, que nunca deixou de a amar.
O percurso de uma mulher de pensamento livre e dona da sua vontade é algo que sempre inspira outras mulheres, mas no caso de Lou, nascida numa época em que raramente as mulheres tinham direito a um espaço público e a fazer valer a sua voz, torna-a ainda mais especial. Estamos entre o final do século XIX e o início do século XX, o espartilho é lei no vestuário e símbolo da ausência de liberdade feminina. Lou deixou uma obra de mais de 20 livros, ensaios e poemas, e os seus trabalhos sobre sexualidade feminina e narcisismo influenciaram Freud. Gosto de a imaginar uma pensadora incansável e uma sedutora incorrigível, apesar da saúde frágil. Foi para ela que Rilke escreveu um dos mais belos poemas de amor em "O livro de horas" que aqui transcrevo. "Apaga-me os olhos: posso ainda ver-te/ tranca-me os ouvidos, posso ainda ouvir-te/ e sem pés posso ainda andar para ti/ e sem boca posso ainda invocar-te./ Quebra-me os braços e posso apertar-te/ com o coração como com a mão/ tapa-me o coração e o cérebro baterão/ e se me deitares fogo ao cérebro/ hei-de continuar a trazer-te no sangue." Não sabemos se ela o esqueceu, o certo é que ele a terá amado até ao fim da vida, talvez por a ter tido e depois a ter perdido, não como amiga, mas como corpo e paixão. A amizade distante é um magro consolo para quem já teve tudo. Talvez aquilo que já tivemos e que perdemos seja a fonte de uma imensa tragédia pessoal.