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Em 2019, na parte final de uma entrevista à então ministra Francisca Van Dunem, em que a sua assessora de imprensa pressionava insistentemente as partes para terminarem a conversa, atirei uma pergunta, sem contextualização, sobre arbitragem. A ministra ficou em silêncio, baralhada, porque achou que o jornalista lhe falava da arbitragem dos jogos de futebol e, portanto, não compreendera a pergunta. Assim de repente, problemas com arbitragem, para a ministra que tutelava não o Desporto mas a Justiça, só se fossem os da bola.
No cargo de primeiro-ministro, António Costa também pareceu não ligar nenhuma à arbitragem, enquanto sistema alternativo de resolução de litígios em contratos milionários entre entidades públicas e privadas e em que, aparentemente, as primeiras perdem demasiadas vezes. Só que, neste caso, não ligar nenhuma pode ser ligar muito.
Há já bastante tempo que a arbitragem vai de vento em popa. Os tribunais estatais estão sempre fora de jogo quando se litiga sobre muitos milhões de euros, e as grandes sociedades de advogados têm hoje departamentos de arbitragem que representam uma parte muito significativa da sua faturação, fornecendo aos processos atores que se vão revezando nos papéis de advogado e árbitro (i.e., juiz).
Um Governo que não impõe limites a esta privatização da justiça - exigindo que os litígios sobre grandes contratos públicos se dirimam em tribunais públicos ou acabando com o inadmissível secretismo dos processos de arbitragem - nem acaba com a vergonha dos tribunais administrativos, onde os processos chegam a arrastar-se décadas, é um Governo que faz muito pela arbitragem.
Eis então que, há dias, se soube que o primeiro-ministro, já prestes a cessar funções, ia frequentar uma pós-graduação em arbitragem na Faculdade de Direito da Católica, em Lisboa. Mais: António Costa, advogado, já se tinha inscrito na Associação Portuguesa de Arbitragem, outrora presidida pelo seu antigo ministro e amigo Pedro Siza Vieira.
O normal na arbitragem é que nem sequer a existência dos processos seja do domínio público, mas, vencido este primeiro muro, já me debati, enquanto jornalista interessado em noticiar processos pendentes em tribunais arbitrais ad hoc, com sistemáticas recusas das partes litigantes em revelar informações tão básicas como o objeto do litígio, os nomes dos árbitros e dos advogados, o valor em disputa.
Com este padrão de transparência, impróprio de uma democracia, não é possível um mínimo de escrutínio. E, não sendo de esperar aqui qualquer mudança por iniciativa do novo Governo, no qual a ministra da Justiça, Rita Júdice, foi até há pouco sócia de uma das sociedades de advogados (PLMJ) que mais lucram com a arbitragem, resta manifestar o desejo de que, de futuro, o advogado ou árbitro António Costa evite envolver-se em eventuais litígios sobre os contratos celebrados ou viabilizados pelos seus governos.