Corpo do artigo
Por subsistirem numa espécie de realidade paralela, subtraídas à pólis, é tentador imaginar escudada nas "ilhas" do Porto a "identidade" portuense que alguns ilusoriamente reputam hoje ameaçada, confundindo mutação com destruição. Em tal ficção, as "ilhas" seriam relicários do "espírito do lugar", ou, na sua anacronia, capazes de sequestrar a passagem do tempo e com ela a mudança que desorienta e angustia. Foi assim que o anátema deu lugar à aura e a "ilha" portuense passou de não-lugar a "hiperlugar", espaço investido de significações fortes.
Os números são conhecidos: vivem ainda nas "ilhas" do Porto mais de 10 mil pessoas em contexto de pobreza, isolamento social e invisibilidade. Acontece que o comunitarismo romantizado que algumas "belas almas" hoje projetam nas "ilhas" acaba por induzir uma perceção enviesada da realidade dos portuenses que nelas vivem.
Outrora lugares sobrelotados, foram-se esvaziando de residentes, pelos motivos óbvios, encontrando-se hoje desabitados um terço dos 8266 alojamentos das 957 "ilhas" inventariadas.
Considerada a média etária da população que ainda aí mora percebemos que as "ilhas" só terão futuro se atraírem novos residentes, o que depende de oferecerem condições aceitáveis de habitabilidade. Ora, é evidente que os proprietários só farão o investimento necessário se tiverem essa capacidade - o que não acontece em grande parte dos casos - e na expectativa de uma contrapartida (hoje inverosímil face a um valor médio de renda de 85 euros). É possível que o programa "1.º Direito", concebido pelo Governo, e outros que venham a ser criados, permitam a reabilitação de algum deste património, mas a experiência aconselha a encurtar as expectativas. A tarefa é vasta, morosa e reclama verbas muito avultadas.
Os obstáculos encontrados recentemente pela Câmara Municipal do Porto no exercício do direito de preferência sobre duas "ilhas" na escarpa das Fontainhas demonstram bem os limites da acção camarária. Felizmente vai ser possível ao município adquirir uma delas, o antigo bairro operário da Tapada, e aí conservar os seus residentes. Já o notável modelo de requalificação da "ilha" da Bela Vista, mérito partilhado de Rui Moreira e Manuel Pizarro, é quase irrepetível, pois apenas outras duas "ilhas" são, como essa, propriedade municipal.
Teremos de conviver com o desaparecimento de uma parte das "ilhas" do Porto (como convivemos no passado, por razões da mais elementar humanidade) e com a metamorfose de outra parte em novas realidades sociais e habitacionais. Se, como outrora, não devemos visar a sua erradicação, também não devemos sacralizá-las. Antes devemos ambicionar manter nelas aqueles que o desejem, havendo recursos para isso, e atrair novos ocupantes, sejam eles jovens casais sem acesso à habitação, estudantes, criadores artísticos, turistas ou outros. Essas "ilhas" serão diferentes, mas não deixarão de conquistar a sua autenticidade. Porque esta é, afinal, uma questão de tempo.
* ESCRITOR E DEPUTADO NA AMP