Uma caminhada à beira-mar pode bem revelar o modo de ser de um país. Numa praia do Norte, num troço da costa com não mais de 50 metros, está a síntese do que somos. Na duna primária, o movimento das gruas revela um prédio a nascer; escassas dezenas de metros adiante, as máquinas movimentam toneladas de pedra ali colocadas para travar o avanço do mar. Haverá maior contradição?
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Ninguém parece preocupado. Ao mesmo tempo, anunciam-se, com grande estrondo, demolições na costa, ao abrigo dos planos de ordenamento da orla costeira. Repetem-se erros para os quais não há qualquer desculpa, a não ser direitos adquiridos por licenças atribuídas numa época em que o conhecimento científico sobre as dinâmicas costeiras estava ainda pouco avançado.
Terá o secretário de Estado da Conservação da Natureza e das Florestas, que na semana passada esteve em Vila do Conde - sim, é em Vila do Conde que este caso concreto está a acontecer, e muitos outros existem no litoral -, tomado consciência, na sua visita às obras de consolidação do muro da marginal da praia de Árvore, do paradoxo? Os euros atirados para a areia são apenas um curativo, e não tardará a que obras idênticas sejam reivindicadas para salvar as construções a nascer à vista de todos, neste preciso momento.
Esta crónica carece de ilustração. A imagem que se obtém da linha de água, ano após ano mais próxima de terra, diz tudo sobre a hipocrisia de quem decide e a indiferença dos que investem de poder os decisores. Estranho país, o nosso. A especulação comanda a vida e os cidadãos gastam as suas economias ou os seus investimentos, tudo depende do lugar que ocupam no chamado elevador social, em casas com o mar aos pés. Só é pena não perceberem que um dia acordarão molhados, e não será em sentido figurado. O Estado (para alguns, é para isso que ele serve) dirá presente na hora da indemnização.
*Editora-executiva adjunta