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Nos últimos dias, figuras com lugar cativo nas televisões e noutros palcos vêm defendendo que Lucília Gago deveria sair ou ser corrida do cargo de procuradora-geral da República, porque houve um juiz de direito que decidiu libertar o ex-presidente da Câmara do Funchal e dois empresários e não viu um único indício de crime nos factos que tinham levado à sua detenção três semanas antes. A decapitação do Ministério Público (MP) é um desejo natural de quem gostaria que o país voltasse a ter um Ministério Público mais fofinho, mas já será difícil de compreender quando defendida, como se tem visto e ouvido desde quarta-feira, por juristas.
Estes não desconhecem que o despacho proferido pelo juiz de instrução, que libertou os arguidos com mero termo de identidade e residência, é uma decisão solitária, falível e, obviamente, recorrível. Mas, para eles, não há duas leituras possíveis. As três procuradoras do Ministério Público que dirigem as investigações desde 2021, o diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal, os inspetores da Unidade Nacional de Combate à Corrupção da PJ, os seus superiores hierárquicos e os outros juízes que anteriormente autorizaram e controlaram diligências do inquérito são incompetentes e andaram mal no processo; já o juiz que estava de turno no Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) e a quem coube interrogar os detidos, esse, é um iluminado que corrigiu os erros de todos os outros. Por consequência, a responsável máxima pelo titular da ação penal, Lucília Gago, não tem outro remédio senão sair.
É claro que esta visão maniqueísta sobre o estado da Justiça tem antecedentes. O mais recente foi a Operação Influencer, em que outro juiz do TCIC também aplicou medidas de coação aquém das propostas pelo MP para os cinco detidos desse caso. E a absolvição de titulares de cargos públicos que se demitiram por força de investigações dirigidas pelo MP parece ter-se tornado uma fatalidade. Mas a culpa será sempre e só desta magistratura?
Nos últimos anos, o MP seguiu o caminho da especialização e tem magistrados dedicados exclusivamente à criminalidade de colarinho branco, chegando hoje a negócios e personalidades que há uma década eram praticamente imunes à ação da Justiça.
Pelo contrário, os juízes continuam a fazer as suas carreiras entre diferentes jurisdições e, se se fixam na penal, tratam de todos os tipos de crimes. Só que a corrupção e os crimes conexos têm especificidades muito próprias, que exigem, por exemplo, uma valorização da prova indireta que não está ao alcance de magistrados judiciais impreparados ou falhos de bom senso.