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"Vozes de burro não chegam ao céu. Sem que a minha modéstia me coloque no céu, põe-me pelo menos os furos suficientes acima desses pandilhas para me não molestar com o que eles dizem. (...) Se eles começarem a contender muito comigo, talvez lhes doa". In Carta do Rei D. Carlos I ao Conde de Arnoso, a propósito das críticas que lhe eram movidas pela imprensa Republicana.
A régia origem da citação autorizou-me o título.
Mas, o que para aqui interessa é que o autor não acabou bem. Parece-me a mim que, por este andar, a ligação dos cidadãos à realidade e desafios colocados à nossa classe governativa também não acabará nada bem.
Tudo isto a propósito do atual momento vivido pelo Partido Socialista. Pela primeira vez temos uma disputa pela liderança que é original, ou seja, não motivada por qualquer derrota expressiva do líder em funções (talvez se imponha, mas não tem fundamento no resultado das europeias) e à procura de solução através de um método também original em Portugal - a realização de primárias em que se contrapõem dois candidatos do mesmo partido.
Razões e circunstâncias suficientes para se poder motivar e preparar um debate criativo, focado e profundo.
Não aconteceu e não vale a pena chover no molhado.
Mas talvez valha a pena tentar perceber porquê.
1. Nenhum dos candidatos tomou a sério a natureza da sua candidatura: a uma liderança partidária! Os partidos políticos ainda são as principais forças organizadoras da nossa democracia. E não parecem estar a funcionar bem tendo em conta o contributo e a capacidade mobilizadora dos seus membros. Alguém ouviu uma palavra sobre isto? Não há nada para mudar, para melhorar, para ressuscitar? Que espécie de falta de respeito é esta pelos cidadãos filiados e simpatizantes que faz com que sejam usados apenas como trampolim para acesso a cargos de governação? Nenhum dos candidatos ali estaria sem o apoio e a confiança dos socialistas. Alguém lhes ouviu uma palavra de apoio, de desafio, de exigência, de motivação? Não. Porque os candidatos assumiram um apoio plácido e ruminante que os levará a um cargo importante e, portanto, falaram já do alto desse púlpito.
2. Nenhum dos candidatos falou! Ambos os candidatos fizeram tiro ao alvo às audiências procurando o timing dos ataques (quase sempre pessoais), a pose impassível, a eficácia do soundbite (o "ritmo e dose" e António Costa deu particularmente nas vistas). Certamente assessorados por profissionais do marketing político, renunciaram à genuinidade em nome de um mau exercício de comunicação que depressa transformou as intervenções num ruído de fundo, apenas multiplicado sem sentido nem impacto nos suportes tradicionais e não tradicionais da Comunicação Social. E, no entanto, dificilmente haverá um momento tão delicado neste nosso país.
3. Por último, nenhum dos três entrevistadores teve a ousadia de organizar uma agenda própria. Do ponto de vista do exercício jornalístico os debates foram iguais. Devem ter sido três porque há três canais generalistas. De resto, a mesma agenda, a mesma estratégia - o aproveitamento pueril do arremesso, da palavra mais forte, do xeque-mate à falta de diferença. Como se não soubessem que políticos experientes e treinados com a maior das facilidades iludem a pergunta, repisam o tema, esfumam a mensagem.
Perdeu-se, em minha opinião, uma oportunidade de ensaiar um discurso desafiador para um partido com a importância histórica do PS que pudesse contagiar e provocar outras formações partidárias e assim agitar e mobilizar a consciência política de todos nós.
Seria muito melhor do que ouvir putativos candidatos a primeiro-ministro que, porque tão fora de tempo, nada nos podem dizer de muito relevante. E o pior é que as estações de televisão não devem ter ganho muito com o assunto. Aposto que a estreia da "Casa dos segredos" contou muito mais para arredondar o fim do mês.
Mas o perigo é que um sistema que se conforma com um discurso que não tem ouvintes atentos pode acabar muito mal. Tivesse D. Carlos tido essa perceção...