A nova vida do Bairro S. João de Deus: "Se alguém disser que estamos pior está a mentir"
Novas casas do Bairro S. João de Deus, no Porto, já estão ocupadas. Espaço público em renovação. Do antigo "Tarrafal" restam as memórias.
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Há um antes e um depois. E as diferenças são tão flagrantes que quem mora no Bairro S. João de Deus, em Campanhã, no Porto, é perentório. "Se alguém disser que estamos pior está a mentir", afirma José Rosas, 62 anos. Do antigo "Tarrafal" restam as memórias. Dos tempos em que se chegou "a passar droga nas fraldas das crianças" ou em que a maioria das mulheres, que foram despedidas de uma fábrica têxtil, tiveram de esconder onde moravam para conseguir arranjar novo trabalho. Manuela Santos, 48 anos, foi uma das que viram um emprego "fugir-lhe" na Rua de Latino Coelho, no Porto, assim que confessou que morava no S. João de Deus.
Hoje a realidade é outra e pelas ruas do bairro reina o "sossego", interrompido apenas pelas obras em curso na via pública. Com várias artérias transformadas em estaleiro, há percursos em terra batida e outros já com tapete de alcatrão, passeios inacabados e guias de pedra à espera de serem perfiladas. É certo que a intervenção vai avançada, mas a quem ali chega parece que ainda há muito por fazer. A renovação é geral: redes de abastecimento de água, drenagens de águas residuais domésticas e pluviais, canalização do gás natural, telecomunicações e iluminação pública.
24 habitações sociais fazem parte da nova fase de obra no bairro S. João de Deus. O investimento estimado é de 1,2 milhões de euros
A primeira fase das novas casas está pronta. Mas os moradores queixam-se que já há problemas por resolver. Contactada pelo JN, a Câmara Municipal do Porto assegura: "Em obras de grande dimensão surge, por vezes, uma ou outra anomalia que é corrigida no âmbito da garantia da obra", como já aconteceu.
O plano da Autarquia - levar uma zona outrora "proscrita" para a "liderança da qualidade de vida em bairros de habitação social no país" - continua em marcha, sendo que recentemente foi lançado o concurso para a segunda fase da reabilitação do bairro.
Além das casas, o espaço público também está em transformação, estando prevista a abertura de uma nova artéria, garantindo a ligação entre rua 2 e a rua 5, com a rua 1. Esta ligação permitirá um novo acesso às habitações construídas.
Na casa de banho faz-se lá um baile
Helena Moura, 83 anos, sobe muito lentamente a Rua 1 do Bairro S. João de Deus. Ainda falta um pouco para chegar ao seu T1 e acaba por sentar-se na soleira da porta de uma vizinha.
"Vivi mais de 30 anos na minha santa casa, mas com as obras puseram-me lá para cima. Queria estar mais para baixo, porque custa-me subir a rua. Não tive sorte nenhuma. Ainda choro pela minha antiga casinha", lamenta-se.
Manuela ouve o desabafo de Helena e dispara: "Não percebo como foi feita a distribuição das casas. Há gente que tem os filhos inscritos no agregado familiar, mas que não vivem na casa e esta senhora não tem outro quarto para um familiar poder ir tomar conta dela; toma banho de 8 em 8 ou de 15 em 15 dias, porque a filha também tem de trabalhar".
No que diz respeito à atribuição das casas, a Autarquia esclarece que "a transferência dos agregados para as novas habitações tiveram em conta os critérios definidos no Regulamento de Gestão do Parque Habitacional do Município".
Helena garante que não consegue subir as escadas para o primeiro andar e, por isso, dorme na sala, no piso térreo, onde também usa a casa de banho que a Câmara acabou por solucionar debaixo da escada, depois de alertada para essa necessidade pelos moradores.
"O quarto é muito bom e na casa de banho faz-se lá um baile! Mas no meu quintal não tenho um estendal e falta um sítio cimentado se quiser lavar um tapete. Já a cozinha é muito bonita e aconchegadinha", pormenoriza.
Embora desabafe que se sente "muito só, sem ninguém para conversar", Helena conta que lhe vai valendo a "boa vizinhança" que lhe leva um "franguinho caseiro" a casa e que até "dá de comer à gatinha" que lhe segue o rasto.
Aqui passei a ter mais conforto
"A minha vida mudou 100%". A sentença é de José Rosas, 62 anos, que foi para a casa nova, na Rua 6, em fevereiro. "A nossa primeira refeição nesta casa foi na terça-feira de Carnaval", recorda a mulher, Celeste.
"Aqui passei a ter mais conforto, mais privacidade, mais segurança, e, inclusive, gasto menos em luz, por causa das portadas serem muito amplas. Respira-se saúde", refere o morador.
José defende que a transformação do bairro passa "pela atitude de cada um", criticando quem deposita sacos do lixo e deixou mobília abandonada junto a uma casa.
"Eu prefiro estimar as coisas que tenho", frisa o morador, enquanto mostra orgulhoso o tapete de relva verdejante à porta de casa e no quintal. Local que agora é o preferido dos netos para "bater umas bolas".
"Se alguém disser que estamos pior está a mentir", reitera José. Celeste corrobora: "Esta casa não tem comparação. Ainda que a antiga fosse muito grande, porque fomos fazendo obras, esta tem outras condições".
"A casa velha [quase em frente à que vivem] é um assunto que morreu, já esqueci", sublinha José.
Celeste Rosas, que "nasceu" no S. João de Deus, recorda-se dos tempos em que "comeu sapos vivos" por conta do mau ambiente que ali se vivia.
Aliás, o receio da generalidade dos moradores ouvidos pelo JN é de quem possa chegar de novo ao bairro.
Os quartos eram muito pequenos
Tivesse a antiga habitação de Maria Adosinda, 86 anos, as condições que esta nova tem e a filha, Manuela, 48 anos, nunca teria sido forçada a levar o pai para sua casa, em Vila Nova de Gaia. "Nas antigas casas os quartos eram muito pequenos e com ele acamado não se conseguia fazer a higiene em condições", conta.
Atualmente a tomar conta da mãe, que "já sofreu quatro AVC", Manuela destaca as "ótimas divisões" e "a maravilha que é o quarto de banho completo".
Porém, lamenta que "sempre que chove" tenha "água em casa". A tal ponto que Maria Adosinda mudou-se em janeiro e em julho já tiveram de lhe ir "caiar as paredes que estavam cheias de humidade".
A par das anomalias estarem a ser corrigidas no âmbito da garantia da obra, a Autarquia aconselha que "outras situações pontuais que surjam" sejam "reportadas pelos interessados junto da Domus Social [empresa municipal]", a fim de serem resolvidas.
Um dia ainda me matava ali
O sorriso de Joaquina, 82 anos, espelha a satisfação com que recebeu a habitação nova: "É uma categoria! Tem mais largueza, mais conforto". Para a moradora, as escadas são a única coisa que devia ter sido pensada com outro cuidado, uma vez que a população é maioritariamente idosa.
"Sem corrimão, tinha a sensação de que as escadas iam a fugir-me; um dia ainda me matava ali". O genro acabou por colocar-lhe um corrimão, mas muitas idosas queixam-se do mesmo problema.
A água empoça toda aqui
Maria Conceição Ribeiro, 71 anos, mudou-se de um T2 para um T1 "pouco antes do Natal". No seu agregado familiar diz que "nada" mudou e que, por isso, foi obrigada a "desfazer-se" de muito do que tinha. "Fui prejudicada", referiu.
Mais: com um estaleiro de obra em frente à porta, "Mariazinha" - como carinhosamente é tratada no bairro - queixa-se que não tem luz na rua e que quando chove "a água empoça toda aqui".
"Dá a impressão que os engenheiros andam a brincar comigo", conclui.
Ano a ano
2016
Primeiras casas
Foi a 22 de abril de 2016 que se iniciou a construção das primeiras 13 habitações do novo Bairro S. João de Deus, distribuídas por sete edifícios.
2017
Contentores
Desde o início da reconversão dos 144 fogos em 84 novas habitações, os moradores estiveram a viver no bairro em contentores, em vez de serem realojados noutros empreendimentos sociais. Uma decisão que foi aceite pela maioria.
2018
Regresso às casas
No final do ano passado, as primeiras casas que foram alvo de requalificação começaram a ser distribuídas. Alguns agregados familiares só neste ano é que se mudaram.
Detalhes
Correio
Há cartas que não estão a chegar ao Bairro S. João de Deus. Segundo apuramos, anda a ser atribuída uma nova toponímia às ruas até então numeradas. Vai valendo o pagamento das contas por débito direto, para evitar problemas.
Rendas
Segundo os moradores, antigamente a renda era de 2,19 euros. Atualmente a quantia é estipulada consoante os rendimentos de cada família.