Chegam, pela alameda de kiwis da Quinta do Sobreiro, em Atães, Vila Verde, sem a pressa de outrora, quando o Portugal profundo se descobriu escasso de tudo e era muita a urgência de resolver coisas tão básicas como o saneamento ou estradas transitáveis.
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Abraçam-se, efusivos, renovando laços urdidos nas batalhas conjuntas travadas em prol do povo que os elegeu, no escrutínio seminal de 12 de dezembro de 1976 para as autarquias locais. O grupo de 15 ex-autarcas minhotos que, todos os meses, reúne para almoçar, constitui-se numa espécie de senado informal do Minho: falta-lhes o poder de decisão de outrora, mas sobeja-lhes influência municipal e opinião sobre a política local. Foram todos presidentes de Câmara, eleitos por partidos diversos, mas as questiúnculas ideológicas do antigamente já não se refletem à mesa. O debate flui pelo que "realmente interessa ao povo".
Terá sido isso que os incitou nos alvores da Democracia local e se mantém, perene. Afinal, "desbravaram terreno, construindo tudo. Porque não havia nada", garantem. E exaltam, orgulhosos, a consciência de "nada terem retirado ao erário público". Porque, à época, todos tinham profissões bem remuneradas. Um perfil de "puro serviço público" que o devir democrático alterou. "Agora, as jotas estão no poder. A maioria nunca trabalhou".
Abancados no salão da casa senhorial que domina a produção de kiwis de António Cerqueira, anfitrião e ex-edil de Vila Verde, Parcídio Sumavielle - que goza de certa deferência, talvez por ter sido, mais do que par na presidência da Câmara de Fafe, governador civil de Braga -, declama um poema de Augusto Gil. Os outros, mordiscando acepipes, acompanham as últimas estrofes em coro. Cerqueira sorri, girando o uísque na mão, hábito que lhe ficou de Moçambique, onde torna sempre que a conversa permite.
A conversa orienta-se, não tarda, já o frango de caril arranca elogios, para as razões de um encontro assim, politicamente eclético e civicamente militante: "As nossas reuniões eram frequentes, no cumprimento das funções de autarcas, até que decidimos que, para que não fosse maçudo, seria útil saber o que cada um é, para lá da política. Nunca houve nestes encontros discussão ou atrito. E, quando há divergências, já somos suficientemente maduros para saber que cada um tem o seu caminho, porque ninguém muda ninguém", resume Agostinho Fernandes, vários mandatos líder da autarquia de Famalicão, após concluir o curso de Filosofia que o colocara na docência. Agora, escreve livros. "Sempre à mão e ao ritmo da respiração".
De fora do distrito de Braga chega Carvalho de Moura, dando conta do frio que sopra em Montalegre. Não impressiona, porém, o "esbaforido" Tomé Macedo, cuja camisa desapertada até ao terceiro botão é já imagem de marca. "O casaco tolhe-me os movimentos", confidencia o homem de cachaço largo, que hipotecou, aos 34 anos, uma carreira na EDP para "desenvolver Amares. E consegui; a diferença está à vista".
Na génese das carreiras autárquicas esteve, garantem, o progresso dos torrões que neles confiaram. "Tínhamos o sonho de transformar este país, dando dignidade àqueles que nada tinham, porque que só era possível a convivência se todos tivessem acesso ao mínimo das condições de vivência", sintetiza Sumavielle, jurista de escritório aberto em Fafe e socialista de projeção nacional.
A independência que resulta das profissões alheias ao universo político-partidário faz toda a diferença, quando evocam nomes da elite política atual, "capaz de baixar a cerviz em quaisquer circunstâncias". "Começámos sem nada e hoje quem está no poder (e é transversal) começou a carreira política nas jotas", observa Pinto de Moura, industrial da Direita, eleito pelo CDS e PSD em Mondim de Basto. João Costa, professor guindado ao poder em Vieira do Minho pelo PSD, recorda o vencimento desses dias: "Um conto e 800. E não havia ajudas de custo!".
A necessidade e a escassez de meios congregou esses autarcas de matizes vários. "Unimo-nos para resolver os problemas", recorda Carvalho de Moura. Ali, ninguém ficava de fora - a política era uma missão.
"Um dia aparece-me na Câmara um cidadão que disse que ia para França e me deixava encarregue da mulher. 'É que anda lá um homem atrás dela e, se sei de alguma coisa, venho cá e mato-o. A ele e a si'", desfia Parcídio. Gargalhada. "Não éramos só presidentes da Câmara - éramos tudo. Até confessores", garante Tomé Macedo.
"Na altura, havia cinco mulheres autarcas", contabiliza Laurentina Torres - Tininha, como é carinhosamente tratada no grupo. Mas isso "nunca foi entrave ao trabalho e ao projeto que tinha para Esposende", diz. v