É instintivo, quase impetuoso: o corpo de Alice avança no impulso irrefletido e humano de abraçar, de sentir o calor de um carinho nos braços das cuidadoras - apesar da barreira da máscara, que engole metade da expressão das emoções.
Corpo do artigo
Mesmo aos 16 anos, é "difícil" assimilar que não pode abraçar quem gosta. Que não pode sair, estar com os amigos, dar um beijo aos pais, à família.
Nenhum dos 11 jovens da Casa do Sol, um dos três centros de acolhimento temporário da ASAS - Associação de Solidariedade e Ação Social de Santo Tirso, sai desde meados de março. São cinco rapazes e seis raparigas, entre os 12 e os 19 anos, e as equipas técnicas inventam mil estratégias e brincadeiras para não negar afeto aos meninos que raramente o tiveram e que lutam, um dia de cada vez, para se reconstruírem e resgatarem o que aqueles que lhes deviam amor e cuidados quebraram - em tantos casos para sempre, deixando-os reféns para a vida da condição de criança em risco.
Alice, Carla e Paula - os nomes são fictícios - disparam quase em uníssono que "sair" está entre o que mais falta lhes faz desde que estão confinadas em casa. "Os amigos fazem muita falta. E a família também", acrescentaria Alice, que divide com Carla, de 14 anos, a preocupação com o "peso" ganho devido aos quase dois meses de recolhimento. Aplicam-se no "exercício físico" segundo o plano de treino fornecido "pelo namorado de uma auxiliar, que é "personal trainer"", e vão-se "pesando, para ver se dá resultado". E fazem vídeos - "as coisas dos "tik tokes"", ri Carla - para fintar as horas mortas que acabariam por encurtar, e muito, desde o arranque da telescola, regresso ao passado imposto pela pandemia e que lhes "ocupa muito mais tempo" do que a frequência presencial das aulas.
"Confuso e estranho"
"No início foi confuso e estranho. Não sou muito dada a tecnologias", reflete Paula, 16 anos e uma "grande paixão" pelas letras. "Leio muito. E agora tenho de ler no telemóvel, porque já não tenho mais livros físicos. Só aqui em casa tenho uns 70, mas já li todos. E ler no telemóvel não se compara a sentir o livro, a virar as páginas...", diz a menina, que quer "ser advogada criminal" e para quem "o livro foi sempre um refúgio". Tal como a escrita, que a "apaixona" e lhe permite "dar conselhos". "É dar aos outros o que não tenho e gostava de ter...". Por instantes, Paula prega o olhar na mesa do pátio, e quem a ouve engole em seco: a afirmação é dorida, e todos pressentem que a mulher que a adolescente há de ser carregará as marcas de um passado traumático.
Ansiedade
É o pequeno João, o caçula da casa, quem lembra as brincadeiras que já ali fizeram. Ri a contar que delirou com os "carrinhos de rolamentos". Mas não deixa de contar os dias para ver a família, o que espera poder fazer logo que "acabe o estado de emergência". "Quando for a casa, tenho de usar máscara", declara, a apontar para a que quase lhe cobre o rosto de miúdo franzino.
"Alguns meninos estavam a começar o processo de sair ao fim de semana com as famílias", explica a educadora social Ângela Ferreira, que dirige a Casa do Sol. O confinamento significou, portanto, nova rutura. Com o exterior e com as manifestações afetivas de quem lhes ampara as angústias, as pequenas vitórias, os choros e as saudades. "Tentamos que a casa seja o mais familiar possível, e, de repente, estamos de máscara e temos quartos de isolamento", lamenta Ângela, que cruza os braços sobre o peito e evoca, com os olhos a sorrir, as palavras de Pedro, um outro pequeno da casa: "Ai, quando eu puder voltar a abraçar-te...!".
Soluções
Criatividade
A presidente da ASAS, Helena Oliveira, diz que as equipas dos três centros - Renascer, Raízes e Casa do Sol - se "reinventaram" para criar imensas soluções para ocupar os jovens.
Auxiliar "fofinha"
No Renascer, a auxiliar educativa Salomé Ferreira é a "fofinha", mas agora "encarna" também as personagens da educadora Catarina e da D. Gina, funcionária da escola dos meninos.
Centro juvenil
A Mundos de Vida, em Famalicão, usou o jardim de infância para criar um centro juvenil, de forma a não confinar os jovens à casa.