Na sala da direcção da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Lisboa há um quadro a óleo que retrata um episódio real e ilustra o espírito que preside à corporação.
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Guilherme Cossoul, fundador e primeiro comandante, aparece saindo de uma janela de trapeira com uma mangueira na mão e vestido como maestro. Cossoul era director do Conservatório e chefe da orquestra do Teatro D. Carlos, mas largou os músicos e a batuta e correu para apagar um fogo.
Os Voluntários de Lisboa, sedeados no Largo do Barão Quintela, foram a primeira associação do género a ser fundada em Portugal, e talvez na Europa, apenas sustentada por sócios. Já lá vão quase 142 anos. Ainda hoje se mantém o pagamento de uma quota anual, mas é apenas simbólica: 2,50 euros.
O espírito de voluntariado mantém-se intocável. Há dezenas de homens e mulheres com décadas de entrega ao quartel. Ali se fizeram casamentos. Mário Rui, adjunto do comando, ligado à corporação há mais de 30 anos, namorou e casou com uma bombeira. Augusto Júlio, 79 anos, vice-presidente da direcção, está nos Voluntários há 58 anos. O filho e a nora são bombeiros e a neta também já gosta do bulício dos "tinonis".
Não que a idade lhe pese, mas, por vezes, Augusto Júlio confessa-se desiludido. "Tenho pena que as pessoas não valorizem o nosso trabalho como antigamente", explica. Ainda assim, garante que há "sangue novo" a entrar para garantir a continuidade. Entre estagiários, bombeiros e comando, a corporação junta 70 pessoas.
Augusto Júlio ainda é do tempo em que se combatiam fogos em mangas de camisa. "Eram fogos que ardiam mesmo e não apenas saídas de capacete", afirma, referindo-se aos incêndios com fumo e pouca chama.
Naquela altura, havia sangue na guelra e algum amadorismo. "Uma vez, fomos chamados a apagar um fogo numa alfaiataria. Aquilo estava tudo tomado. Ao fundo havia um clarão enorme. Por mais água que deitássemos, o fogo não abrandava. Só depois percebemos que era um espelho e que as chamas estavam nas nossas costas", revelou, rindo.
Mulheres apenas cozinhavam
As primeiras mulheres entraram na corporação nos anos 80. Eram sobretudo as namoradas dos bombeiros. Seguiam para as ocorrências numa antiga carrinha-biblioteca oferecida pela Gulbenkian, equipada com cozinha. Elas garantiam comida quente, roupa lavada e mimos.
"Enquanto os outros bombeiros andavam com rações de combate, nós já comíamos bifes com batatas fritas", ironiza Mário Rui. Hoje, não há diferenças. O posto de segundo comandante está entregue a uma mulher: Teresa Dantas. A corporação foi, aliás, a terceira de Lisboa a ter mulheres, depois da Cruz de Malta e de Campo de Ourique.