O cabo que unia as duas cabinas do Elevador da Glória e que cedeu no seu ponto de fixação da carruagem que descarrilou não respeitava as especificações da Carris, nem estava certificado para uso em transporte de pessoas.
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As informações constam do relatório preliminar do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários (GPIAAF) ao acidente ocorrido com o Elevador da Glória, em Lisboa, no dia 3 de setembro, e que causou 16 mortos e cerca de duas dezenas de feridos, entre portugueses e estrangeiros de várias nacionalidades.
Segundo o documento, a que a agência Lusa teve hoje acesso, "o cabo instalado não estava conforme com a especificação" da Carris para utilização no ascensor da Glória, nem "estava certificado para utilização em instalações para o transporte de pessoas".
O GPIAAF acrescenta que o cabo "não era indicado para ser instalado com destorcedores nas suas extremidades, como é o sistema no ascensor da Glória (e no ascensor do Lavra)".
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Falhas no processo de aquisição pela Carris
A investigação detetou falhas no processo de aquisição do cabo pela Carris e nos mecanismos internos de controlo desta empresa responsável pelos ascensores.
"A utilização de cabos multiplamente desconformes com as especificações e restrições de utilização deveu-se a diversas falhas acumuladas no seu processo de aquisição, aceitação e aplicação pela CCFL [Companhia Carris de Ferro de Lisboa], cujos mecanismos organizacionais de controlo interno não foram suficientes ou adequados para prevenir e detetar tais falhas", sustenta o GPIAAF.
Este organismo lembra, contudo, que, anteriormente, cabos iguais estiveram em uso durante 601 dias no ascensor da Glória (e 606 dias no ascensor do Lavra), sem incidentes.
"Desta forma, naturalmente se conclui que, neste momento, não se pode afirmar se interveio, ou que intervenção teve, a utilização deste tipo de cabo não conforme na rotura ocorrida aos 337 dias de utilização, sendo certo para a investigação que houve outros fatores que tiveram forçosamente de intervir", aponta o GPIAAF.
A investigação sublinha que "a zona onde o cabo rompeu não era passível de inspeção visual sem desmontagem do destorcedor do trambolho superior [zona de fixação do cabo]".
"Roturas progressivas"
"Uma análise macroscópica das extremidades dos cordões rompidos evidencia roturas progressivas, portanto, ocorrendo gradualmente ao longo do tempo, e de diversos tipos. As peritagens metalográficas que serão realizadas no decurso da investigação esclarecerão os mecanismos de rotura envolvidos", lê-se no relatório preliminar.
O GPIAAF revela também que, "imediatamente antes da preparação para o início da viagem" do acidente, na cabina 1, que se encontrava no cimo da Calçada da Glória, estavam 27 pessoas, incluindo uma criança e o guarda-freio, enquanto no interior da cabina 2, junto à Praça dos Restauradores, estavam 33 pessoas, incluindo três crianças e o guarda-freio.
"Portanto, ambas bem abaixo da sua lotação máxima de 42 ocupantes", frisa este organismo, acrescentando que no dia do acidente os ascensores "haviam realizado 53 viagens no total".
"A ocupação média foi de 22 passageiros na cabina 1 e de 17 passageiros na cabina 2, sendo que a lotação máxima de 42 passageiros foi atingida em duas viagens na cabina 1 e em uma viagem da cabina 2", constatou a investigação.
No relatório preliminar, o GPIAAF adianta ainda que ambos os ascensores "estavam equipados com quatro câmaras de videovigilância, cada um, e com um dispositivo dotado de acelerómetros [equipamentos para medir a aceleração] de baixa precisão", dando conta de que na Calçada da Glória "existem também diversas câmaras de vigilância".
"Tal permitiu à investigação estabelecer com o rigor suficiente a sequência de eventos que antecederam o acidente", indica o documento.
O primeiro embate ocorreu a uma velocidade estimada de entre os 41 e os 49 quilómetros hora, tendo decorrido 33 segundos desde a preparação para a viagem e 20 segundos desde o início do movimento.
Carris não conseguiu explicar "engano" na compra de cabos
O documento hoje divulgado, explica o processo de aquisição pela Carris, iniciado em março de 2022, de um lote de dois cabos, um que funcionou normalmente durante 600 dias, e o segundo que cedeu ao fim de 337 dias de utilização.
Segundo o GPIAAF, "por uma razão que a Carris não conseguiu explicar à investigação, e de que não foi possível encontrar evidências documentais na consulta feita aos fornecedores, foi adotada para os dois artigos adicionados, correspondentes aos cabos para os ascensores da Glória e do Lavra, a especificação fornecida" pela Direção de Manutenção do Modo Elétrico (DME) da Carris "para um dos cabos do elevador de Santa Justa, mudando apenas o diâmetro".
O GPIAAF conta que, em 17 de março de 2022, a DME identificou a inexistência em armazém dos cabos para a remotorização do elevador de Santa Justa, sinalizando junto da Direção de Logística e Património (DLP) a necessidade da sua "compra urgente".
A DLP faz uma consulta a quatro empresas para os cabos para o elevador e Santa Justa, solicitados pela DME, "aos quais foram acrescentados" outros dois artigos "respeitantes aos cabos do ascensor da Glória e do Lavra", justificados com um pedido de compra pendente, datado de 18 de novembro de 2021.
Foto: Miguel A. Lopes
O GPIAAF considera "relevante" o facto de essa consulta incluir como únicos anexos os dois ficheiros fornecidos pela DME com as características dos dois cabos para o elevador de Santa Justa e indicação da norma aplicável.
O contrato entre a Carris e a empresa fornecedora selecionada foi assinado em 14 de abril de 2022. "Mais uma vez, não foram detetadas pelas partes signatárias as diferenças constantes do documento entre a graduação e a norma de certificação dos aços pedidas pela CCFL [Carris] e propostas pelo fornecedor. Também os números de inventário dos artigos constantes das especificações face àqueles a fornecer não suscitaram questionamento", diz o GPIAAF.
Os cabos foram recebidos e aceites no armazém da Carris em 9 de agosto de 2022, "sem que mecanismos organizacionais de controlo de qualidade tivessem detetado as diversas divergências existentes".
"Segundo declarações recolhidas, no momento da primeira instalação do cabo no ascensor da Glória, em dezembro de 2022, os trabalhadores do prestador de serviços e a fiscalização da CCFL [Carris] no terreno efetivamente notaram a sua diferente constituição e comportamento no manuseamento, nomeadamente o facto de ter alma de fibra e de ser muito mais flexível e de mais fácil manipulação", explica o GPIAAF.
Depois de submetido ao peso das cabinas, "o cabo aumentou consideravelmente de comprimento em relação à dimensão nominal, o que implicou cortar-lhe um troço de 4,5 metros para que as cabinas ficassem na posição em que deviam".
"No entanto, os trabalhadores envolvidos não detinham os conhecimentos necessários para detetar a desconformidade do cabo com a especificação", indica a investigação.
Por outro lado, frisa o GPIAAF, "a área de engenharia, ao ser informalmente consultada pela área de manutenção sobre o diferente comportamento, estava no pressuposto de que o cabo em questão correspondia à alternativa em alma de fibra sintética admitida na especificação que havia elaborado e não tinha sequer motivo para suspeitar de que o cabo adquirido não lhe correspondia", considerando "normal e expectável tal diferença de comportamento".