Já lá vão 10 anos a ajudar toxicodependentes, alcoólicos, prostitutas. Todos os dias a "Carrinha Dá a Volta" sai do Centro Comunitário de Esmoriz para fazer a ronda pelas estradas de Ovar.
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Um psicólogo, uma enfermeira e uma técnica de ação social arrancam às 9 horas para fazer 60 quilómetros. Chamam-lhe o "giro". Dentro da carrinha, leva-se mais do que metadona, seringas ou preservativos. Leva-se companhia e respeito por opções de vida. Numa década, já foram ajudadas 500 pessoas.
São três horas e há paragens certas. Os utentes estão no lugar combinado. Se a carrinha demora, telefonam. Nuno Rechena, psicólogo, avisa: "Estamos quase aí". Nuno viu o projeto nascer quando "Ovar foi considerado território prioritário" em matéria de dependências. Antes, iam à procura, agora são os utentes quem os espera.
"Trocamos seringas, damos comida, roupa, cobertores. Alguns vivem na rua", relata Nuno, que também faz consultas de psicologia ou rastreios ao VIH, hepatite, sífilis. A maioria dos utentes está medicada. É uma vitória do projeto, embora o objetivo não seja esse. "A ideia não é levar para tratamento, é aceitar que há pessoas que querem consumir ou prostituir-se e tentar minimizar os danos".
Passam pelo bairro cigano de Válega, para ajudar Carlos que começou a consumir heroína na cadeia, ou por um antigo armazém de pesca, no Furadouro, onde vive Francisco, que chegou a correr ao lado de Carlos Lopes. Conseguiu largar o álcool há dois anos.
"É a carrinha que me traz a droga"
CLAUDINO E JOSÉ SÁ
A primeira paragem é num parque de estacionamento onde estão os irmãos Zé e Claudino a arrumar carros. Zé, 60 anos, consumiu heroína durante 36. Chegou a estar preso por tráfico. Não perdeu o sentido de humor: "Preso não, detido durante oito anos". A técnica Graça Coutinho comenta: "Nunca saímos daqui sem dar uma gargalhada".
Zé deixou a heroína, faz consumos pontuais de cocaína. Abre a mão para mostrar o que o dia já rendeu. Já nada é como aos 20 anos, quando começou a consumir. "Agora é esta carrinha que me traz a "droga". Apareceram aqui em 2008. Têm-me ajudado".
A ele e ao irmão Claudino, 48 anos, que saiu da cadeia há pouco tempo e vive nuns anexos com Zé. Começou aos 18 com uns charros, depois veio o haxixe, a cocaína, a heroína. "O meu irmão apresentou-me a carrinha. Vêm cá todos os dias trazer medicação e até me levam ao hospital. Já são amigos".
Consumiam juntos e largaram
JÚLIO E ISABEL
A carrinha dá a mão 60 indivíduos. Como Júlio e Isabel, 45 anos. Esperam num cruzamento pelos técnicos que lhes levam metadona. Estão juntos há 24. Ela começou a consumir heroína com ele. Fizeram-no durante mais de 20 anos, sempre lado a lado. "Ultrapassámos tudo juntos. E passámos por muito. Sofri um AVC e ele esteve sempre comigo", diz Isabel. Foi o amor que a empurrou para um caminho maldito, mas de onde conseguiram sair os dois.
"Esta carrinha caiu-nos do céu. Vieram mudar-nos a vida. Há um ano que recebemos esta visita". Os técnicos ainda dão uma ajuda com uma conta da luz que o casal não consegue pagar. Vivem do rendimento mínimo e é difícil encontrar trabalho depois de largar o vício. Júlio faz uns biscates. "Ainda há muito preconceito", garante quem promete ficar junto até ao fim da vida.
"O dinheiro corrompe"
MARTA
Na beira da estrada está Marta, à espera que a carrinha lhe leve preservativos. Tem 42 anos e é prostituta há 11. "Estava com dificuldades e isto apareceu por intermédio de uma amiga". Chega a ter sete clientes por dia e a faturar quase mil euros numa semana. "Continuo por comodismo. O dinheiro corrompe". Quando a carrinha começou a aparecer ali, ofereceu resistência. "Estava num quadro de alcoolismo. A primeira abordagem era dar preservativos, toalhetes". Mas Nuno ofereceu-lhe ajuda. "O álcool começou a levar-me para um caminho muito decadente". Não achava que precisasse de psicólogo, agora assume que Nuno lhe "devolveu a sanidade mental". Há oito anos que não bebe e virou coordenadora dos narcóticos anónimos. Hoje, a carrinha leva-lhe preservativos, lubrificante e companhia. Diz que é a burrice que a mantém ali. "Isto não é dinheiro fácil, é dinheiro rápido". Gosta de ler Dostoiévski e de medicinas alternativas, como reiki. Está a trabalhar com Nuno para fazer o 12.o ano.
Um mês sem se injetar
MÁRCIO FILIPE
Depois de uma paragem para dar de comer num parque de estacionamento, Márcio, 40 anos, aparece no centro de Ovar. Faz contas de cabeça: "Comecei na heroína com 14 anos. Porque a certa altura uma ganza já não bate". Aponta para Nuno, Graça e a enfermeira Rita Sá: "Com o apoio deles, consegui deixar". Está há um mês sem consumir. Vive numa casa abandonada, sozinho, e a carrinha leva-lhe cobertores, comida e metadona. "Estou aqui a arrumar carros, porque não tenho rendimento nenhum. É melhor que roubar". Não sabe ler nem escrever, porque foi "criado pobre" e não aceita ir para lado nenhum sem a sua cadela. "Sem mim, ela morre".
Pormenores
Quem financia - O projeto de apoio social é financiado pelo Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências, do Serviço Nacional de Saúde.
Três técnicos - Na carrinha vão três técnicos do Centro Comunitário de Esmoriz. O psicólogo Nuno Rechena, a enfermeira Rita Sá e a técnica social Graça Coutinho. Só Nuno está a tempo inteiro, Rita e Graça têm de fazer algum trabalho voluntário.
Sem-abrigo - Quase todas as pessoas que ajudam são sem-abrigo, vivem em prédios abandonados ou garagens. Os técnicos ainda oferecem apoio social e acompanham os utentes às consultas.