Casal tirsense restaura instrumentos das igrejas e lançou a semente do Festival Internacional de Órgão, que arranca neste domingo em Santo Tirso e Famalicão.
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“Os tubos têm alma, e é aqui que preparo as almas”, mostra Joaquim, inclinado sobre uma mesa da oficina, enquanto dá forma à peça metálica que há de funcionar como o bisel do tubo que acabara de moldar. Longe de ser retórica, os órgãos têm mesmo alma, designação de uma componente que define a passagem do ar pelos tubos e que lhes separa o pé do corpo.
E os instrumentos restaurados pela “minúcia e paciência” de Joaquim e Celeste Silva hão de ter também a alma do casal de Santo Tirso, que, na oficina da pacata localidade de Lama, em Além-Rio, operam verdadeiros milagres na recuperação destas velhas relíquias históricas que ainda se encontram em templos religiosos.
A partir deste domingo, estes instrumentos serão os protagonistas do Festival Internacional de Órgão (FIO), que até 6 de outubro vai passar por mosteiros e igrejas de Santo Tirso e Famalicão – não por acaso, os dois concelhos do Vale do Ave que têm a maior concentração de empresas de organaria do país. “O órgão é um ser vivo: tem coração, pulmões e respira. Ele fala, a seguir”, entusiasma-se Joaquim, antigo tecelão da Têxtil Nortenha, em Famalicão, 54 anos e desde 1995 dedicado à construção de tubos, arte que abraçou por influência do mestre organeiro alemão Georg Jann, que esteve em Portugal e construiu os órgãos da igreja da Lapa e da Sé do Porto.
Quase da cor do avental azul forte, os olhos de Celeste vibram ao falar do trabalho a que se dedica desde 2001, quando deixou de ser escriturária para se tornar na “única mulher portuguesa a construir e restaurar tubos de palheta”. Senta-se diante do robusto torno para “fazer as cânulas para as palhetas”. É “tudo manual”, orgulham-se os fundadores da JMS Organaria, criada em 2015, em Famalicão, e desde há dois anos instalada em Santo Tirso.
Ciclos de concertos
Enquanto criava a JMS (do nome do fundador, Joaquim Manuel Silva), o casal aventurou-se a organizar ciclos anuais de concertos, uma “semente” que ele trouxera da Suíça, onde trabalhou numa organaria cuja dona lhe deu a ideia. Em 2019, os concertos dariam lugar ao FIO. Adensa-se o azul intenso dos olhos de Celeste: “O festival é mais um filho nosso. Através dele, as pessoas ficaram a conhecer o mundo da organaria, que até aí era desconhecido”.
À oficina chegam órgãos de todo o país, e cada um é analisado à lupa, para que as peças degradadas ou danificadas possam ser reparadas ou, em último caso, substituídas. “Tenta-se sempre aproveitar aquilo que é histórico no órgão, e só se põe [um componente] novo se não for possível recuperar”, explica Joaquim, apontando para um instrumento de 1805, oriundo de Lamego.