Cinco anos depois, a inscrição da construção naval em madeira no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial (INPCI) está finalmente em consulta pública.
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Pelo país, há 35 candidaturas em apreciação. Se, por um lado, os processos se arrastam - muitas vezes, uma mão-cheia de anos; por outro, é também verdade que são cada vez mais as propostas a chegar e, de norte a sul, aumenta a consciência do valor das artes e tradições.
No século XV, com os Descobrimentos no auge, Vila do Conde era o maior construtor de naus e caravelas do reino. A cidade fez-se gente à boleia de uma construção naval pujante. Nos anos 60/70/80 do século passado, os estaleiros vila-condenses empregavam centenas e dali saiu boa parte da frota pesqueira portuguesa. Hoje, os barcos novos são de alumínio e fibra. Já não há novas construções. Entre os jovens, ninguém aprende. Nos estaleiros, não restam mais de uma dúzia de construtores navais, apenas três capazes de "riscar" um barco e todos com mais de 60 anos. São os únicos no país e dos poucos do Mundo, fiéis depositários de rituais com mais de um século e de um saber-fazer que não vem nos livros e que, por ali, ia passando de mestre para aprendizes, de geração em geração.
Câmara avançou
Em maio de 2015, consciente de que, se nada fizesse, esse património corria sério risco de se perder, a Câmara de Vila do Conde meteu pés ao caminho. Pesquisou, gravou depoimentos, recolheu ferramentas, inventariou. A candidatura "Um Porto para o Mundo" foi submetida a 23 de agosto de 2016. A ideia é, numa primeira fase, inscrever a secular arte no INPCI para que depois possa ser feita a candidatura a Património Imaterial da Humanidade da UNESCO.
A batalha maior é contra o tempo, e o certo é que, só volvidos cinco anos, o processo chegou, agora, à fase de consulta pública.
A Câmara tem vindo a pressionar, mas, na Direção-Geral do Património Cultural (DGPC), o processo é lento, muito lento. Ali, todos os dias contam.
A DGPC admite que a candidatura de Vila do Conde "foi objeto de uma demora excecional" e lamenta o sucedido. Promete, agora, fazer "todos os esforços para que este processo tenha o seu desfecho no mais curto prazo possível".
A consulta pública termina no próximo dia 15. Seguem-se 120 dias para a decisão final, que a DGPC quer "antecipar", pelo que deverá chegar antes do final do ano.
Salvaguarda
Entretanto, a salvaguarda do que ainda resta não parou. A antropóloga municipal Ivone Pereira, António José Carmo - neto do velhinho Samuel dos estaleiros Samuel & Filhos, um dos quatro que ainda resistem - e a investigadora Amélia Polónia seguem ao leme. A Câmara já tem o projeto do futuro Centro de Artes Náuticas, que ficará na antiga Seca do Bacalhau. Será um misto de museu - que cruza a história da construção naval com a secagem do bacalhau -, centro interpretativo e oficina de formação destinada a construtores navais nacionais e estrangeiros. A candidatura ao programa europeu EEA Grants já está aprovada. O financiamento é de 750 mil euros.
Apontamentos
Teatro de rua
O projeto "Um Porto para o Mundo" visa, por um lado, salvaguardar técnicas e ferramentas e, por outro, garantir que este saber-fazer continua a transmitir-se às gerações mais jovens. Desde 2015 que, anualmente, o município de Vila do Conde leva à cena o maior teatro comunitário de rua do país. É a face mais mediática do projeto "Um Porto para o Mundo".
Réplicas
Dos estaleiros de Vila do Conde já saíram três réplicas de caravela. A "Bartolomeu Dias" (barco-museu na África do Sul), a "Boa Esperança" (Algarve) e a "Vera Cruz" (Lisboa). Foram riscadas à mão no Samuel & Filhos. Em Vila do Conde ficou uma nau, hoje imagem de marca da cidade. Em 2016, a fragata russa Shtandart escolheu Vila do Conde para reparação, a prova de que o mercado de réplicas históricas pode ser promissor ali.
Memória
A construção naval é uma das atividades mais emblemáticas de Vila do Conde, sendo das indústrias mais antigas do país, com origens que remontam aos séculos XI e XII. O concelho continua a preservar esta memória, sendo exemplo dessa estratégia o edifício da Alfândega Régia - Museu de Construção Naval, situado na Rua Cais da Alfândega, no coração da zona ribeirinha, onde, outrora, laboraram os estaleiros navais vila-condenses. A "Nau Quinhentista" é outro exemplo.