Sommelière do ano 2024 para o "Folha de São Paulo", Gabriela Monteleone passou pelo seu bar em Vila Nova de Gaia – Tão Longe Tão Perto – para mostrar o que de mais interessante se tem feito nos vinhos brasileiros
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O projeto Tão Longe Tão Perto começou no Brasil durante a pandemia como forma de pôr em diálogo produtores e apreciadores de vinhos. Agora, já tem três bares - em São Paulo, no Rio de Janeiro e, deste lado do Atlântico, em Vila Nova de Gaia. Aposta em vinhos de pouca intervenção e servidos à torneira. Uma das fundadoras do projeto, a sommelière Gabriela Monteleone, revolucionou a visão sobre os vinhos da América do Sul como o seu trabalho no DOM, do chef Alex Atala. De passagem por Portugal, falou com a Evasões do seu percurso e das especificidades do vinho do Rio Grande do Sul.
As raízes italianas influenciaram o seu interesse pelo vinho?
Os brasileiros dizem que gostam de vinho quando têm um avô italiano, e isso diz muito sobre a nossa história vitivinícola. Apesar da família do meu pai ser toda italiana, nunca tive essa conexão. Formei-me em gastronomia e estagiei numa enoteca italiana. Estudei bastante para me inserir nesse universo e comunicar com os clientes. Acabei por me apaixonar pelas possibilidades de pesquisa, porque o vinho cruza história e cultura. E interessa-me o lado mais filosófico do vinho.
Depois, foi para Itália.
A minha chefe sabia que eu falava italiano. Acabei por acompanhá-la a Itália. Aí, ficou completa a sedução. Envolvi-me bastante e, quando voltei, decidi que ia ficar no vinho. Comecei a trabalhar em restaurantes como sommelière, a fazer viagens, sempre estudando, lendo, conversando com os produtores.
Até que teve uma proposta do Alex Atala. Como foi essa mudança?
O chef Atala abriu portas para aquilo que temos hoje de “fine dining”, com uma cozinha de pesquisa acerca da identidade brasileira. Cheguei lá com o desafio de montar um menu harmonizado, o que não existia no Brasil. A carta era muito convencional, com marcas conhecidas de vinhos argentinos e chilenos. Não dialogava com o resto. Ele deu-me carta branca para criar uma narrativa para o DOM e comecei a pesquisar pequenos produtores da América do Sul de vinhos de baixa intervenção. Em 2010, o Brasil era ainda muito restrito, mas também comecei a pôr o que já havia de interessante.
O projeto Tão Longe Tão Porto, com Ariel Kogan, começou na pandemia com provas online, como evoluiu?
Fiz 20 encontros com 60 produtores do mundo inteiro e usei esse material para o livro “Conversas Acerca do Vinho”. Quando chegamos ao fim da primeira quarentena, pensei que as pessoas iam querer ir para a rua, mas não quis perder o projeto. Uma das minhas preocupações como sommelière é o facto de estar em ambiente urbano a servir um produto do meio rural. E é uma falha não discutir o impacto urbano. Uma vez em Paris vi servirem vinho à torneira. Fiquei com aquilo na cabeça e pensei que podia ser uma das soluções. Para um restaurante é bom, há menos perdas de vinho e menos desperdício de garrafas. No Brasil, não podemos receber vinho a granel e outros países. Pelo que teria de trabalhar só com produtores nacionais. E o que podia ser uma limitação, foi uma maravilha. Era a solução para colocar vinho brasileiro em toda a parte, a copo.
O brasileiro tem preconceito com o vinho do seu próprio país?
Tem, mas é por desconhecimento e o porque o vinho ainda é visto como um luxo. A nossa produção é pequena. O Rio Grande do Sul é a região mais avançada na vitivinicultura, mas temos barreiras, questões logísticas que encarecem o vinho.
Identifica alguma caraterística do vinho brasileiro que o diferencie dos restantes da América do Sul?
É cruel pegar numa região e dizer que é tudo igual, mas o vinho brasileiro não tem nada a ver com o argentino ou o chileno. Estamos na ponta Atlântica, a Argentina está no meio e com vinhos de montanha, e o Chile também, mas no Pacífico. Os nossos graus alcoólicos tendem a ser menores e por causa da humidade elevada têm uma acidez muito interessante. Talvez seja, na América do Sul, os que mais se aproximam dos europeus.
Como é o momento atual da produção de vinho?
Temos produtores que estão a explorar as castas antigas. Estamos a viver a descoberta da identidade. E já temos indicações geográficas, como por exemplo a DO Altos de Pinto Bandeira, para espumantes.
UMA HISTÓRIA DO VINHO BRASILEIRO
É logo no século XVI que começa a história vínica do Brasil, quando o português Brás Cubas plantou vinha onde é hoje São Vicente (São Paulo). A produção não foi para a frente por causa do clima, com muita humidade na época da colheita”, explica Gabriela. Além disso, o que se consumia de vinho tinha de ser levado pela coroa e o pouco que havia no Brasil era para a Igreja. Só mais tarde, com a imigração italiana entre 1870 e 1930, acontece um novo ciclo. “Chegaram com as estacas das variedades que costumavam trabalhar em Itália, como a Peverella, casta branca que durantes décadas foi a mais plantada no Rio Grande do Sul. Só que há uns 15 anos, já não se via, “já ninguém sabia que ela existia. É uma variedade que vem de Trentino porque muitos imigrantes vieram de lá. Estas e outras castas como Teroldego, Barbera ou Nebbiolo perderam-se nos anos 1960, quando entraram no Brasil multinacionais vitivinícolas. “Olharam para aqueles vinhedos de variedades que não conheciam e mandaram arrancar para plantar Cabernet Sauvignon, Merlot, Chardonnay, Pinot… queriam fazer vinhos aos moldes franceses". Hoje, as castas francesas continuam a ser as mais utilizadas, mas há um movimento que está a recuperar o que restou das antigas. Também há cada vez mais produtores a fazer uma viticultura e vinhos de pouca intervenção.