Quinta da Murta é a última grande casa de campo na aproximação do Douro ao Atlântico, no Porto. Um palco deslumbrante, que procura resistir a todas as tentações urbanísticas.
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"Se nos fecharmos três ou quatro meses, não precisamos de ir à rua. Só para comprar tabaco...". Na emergência do confinamento, Maria Luísa Ferreira não se refere só à autossustentabilidade material. Entre ovelhas, pavões, patos, gansos, galinhas, coelhos, abelhas e tudo o mais que a terra dá, a maior fartura da proprietária da Quinta da Murta, a última antes de o Douro chegar ao Atlântico, está na comunhão com a natureza e no gozo espiritual de manter uma reserva inteiramente biológica em plena cidade do Porto, à margem de uma certa pressão do imobiliário, numa das zonas mais cobiçadas pelas betoneiras.
Maria Luísa segura uma tela de autor incógnito, datada de 1890 e pintada desde a outra margem do Douro, desde a Afurada. Aponta a capela de Santa Catarina, mandada erigir por D. João II, em finais do século XIV, e destaca o solar oitocentista da Quinta da Murta, numa bolha de biodiversidade que atravessou os tempos e que resiste até hoje, em Lordelo do Ouro, ali por cima do Fluvial, a uma pedrada do rio que beija o mar. "É também toda esta história, toda esta memória que quero defender e preservar", conta uma das herdeiras da propriedade, que a família mantém há três gerações, desde que, nos anos 1950, foi adquirida por Edmundo Alves Ferreira, um abastado industrial das conserveiras de Matosinhos.
"Prometi ao meu avô e ao meu pai que havia de manter a quinta e é isso que farei até ao fim dos meus dias", insiste Maria Luísa, senhora de um património incalculável e das galochas mais despojadas, a lidar a terra, a tutear a bicharada e a comunicar com limoeiros, laranjeiras, loureiros e tudo o que é planta aromática. É uma mulher de armas: "Aqui, sou eu que faço tudo. Sou trolha, picheleira, eletricista, tudo... Até pinturas. Custos de manutenção? Aqui estão o meu Ferrari e as minhas férias no Havai. Nunca fui a lado nenhum", afirma, sem ponta de exagero. É também a curadora do património genético da quinta, a cuidar do "forninho", como chama à chocadeira elétrica dos ovos que hão de dar as próximas gerações de gansos, pavões e patos. "Sei que alguns vão bater as asas. Aliás, os patos que andam no rio são todos filhos dos meus patos", felicita-se Maria Luísa.
É também com esta transmissão desinteressada, por contrato natural, que se congratula a dona da Quinta da Murta, gratificada com as virtudes da natureza e com os métodos mais ancestrais da lavoura. "Aqui não entram químicos. Mas isso já é mais com os caseiros. Estão cá há 36 anos. São como família", conta Maria Luísa, a anunciar Arminda Madureira, de 68 anos, e António Madureira, de 67. Amanham a terra, para consumo familiar e para distribuição por circuitos curtos, vizinhos e informais.
O casal chegou do Marco de Canaveses e instalou-se na quinta em 1984. "Sou da família dos Claudinos, uma espécie rija que havia lá no Marco, de homens bravos para jogar o pau", apresenta-se António, um exterminador implacável das invasoras asiáticas que lhe atacam as colmeias de indígenas tripeiras. "Só na última primavera matei para aí umas 40 mil, com armadilhas e raquetas", afirma.
Destes métodos simplificados também se serve o caseiro para espantar outros intrusos, do submundo da droga e de toda a marginalidade, que ocupam furtivamente os edifícios abandonados nas cercanias, designadamente o que foi a casa do capitão da antiga Manutenção Militar, o ex-futuro lar do Infarmed, paredes-meias com a quinta.
"Aquilo ali, na marginal, é um "drive-in". É só passar de carro e levar o produto. Nós cá estamos no nosso mundo. Quando aparecem, trato de os mandar embora. E eles vão-se", determina Maria Luísa. Uma parelha de rottweillers também exerce o seu efeito dissuasor. "Ali os gansos também têm no bico um bom serrote", observa a dona. E para grandes males também há grandes plantas: "Sabe o que é isto? É uma arruda. É contra o mau-olhado. Bem precisa é", diz Arminda.
Cinco blocos e 320 casas para arrendamento acessível
Se a Quinta da Murta se compromete com a serventia agrária dos solos, num território que ainda em meados do século passado era de muita lavoura, para abastecimento dos mercados do Porto e de Matosinhos, Lordelo do Ouro também verifica que o mundo pula e avança na tensão urbanística. É o caso, ali ao lado, de um projeto municipal para construção de cinco blocos de habitação, num total de 320 fogos (T2 e T3), destinados ao mercado de arrendamento acessível. O investimento, em terrenos da Câmara, ronda os 46 milhões de euros e é assumido integralmente pelo município. Na vocação social e de reordenamento territorial, a Câmara prevê a integração dos bairros de Pinheiro Torres e da Mouteira, bem como a reestruturação viária e urbanística de toda a área e a valorização de espaços verdes. A ribeira da Granja será desentubada e devolvida ao leito original. Será criado um parque de proximidade. A obra deverá começar em finais de 2021.
Quadro deslumbrante
No distinto postal em que se enquadra, a Quinta da Murta, localizada mesmo por baixo do miradouro da capela de Santa Catarina, tem ela própria vistas largas para o deslumbrante Douro. E é balcão privilegiado para outro espetáculo "de beleza rara, feérica", como é o fogo de artifício de S. Pedro da Afurada.
Cavalos, não escravos
Se alguma vez pretendeu ter algum rendimento turístico, a quinta rapidamente deixou cair o projeto. Lamenta que a Câmara não autorizasse a "start up" para passeios de charrete, a tração animal, e recorda a sanha abolicionista das associações de defesa dos animais. "Não queriam a escravatura dos cavalos", conta Maria Luísa Ferreira.
As propriedades do mel delicioso
Entre todas as virtudes, mais uma para o parque vegetal e animal da quinta. Dois reinos em perfeita comunhão, como se testemunha na atividade das abelhas e na riqueza floral que faz "o mel mais mais delicioso" do Porto. "Como agora, no inverno, não há flores, deve ser das do cemitério", brinca Luísa Ferreira.