A baixa do Funchal amanheceu ontem, segunda-feira, com um bulício diferente dos outros dias: onde antes circulavam turistas pelas lojas, serviços e restaurantes que lá havia, instalou-se uma espécie de caos organizado sem estrangeiros à vista.
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Comerciantes, funcionários, amigos e voluntários tentavam salvar o possível e devolver a dignidade aos estabelecimentos que a intempérie de sábado encheu de lama e calhaus. Os prejuízos, dizem, são ainda uma incógnita; mas não é preciso ser contabilista para perceber que são muitos. E, para alguns, apesar do esforço que congregou populares, escuteiros e até os frades da igreja de Nossa Senhora do Carmo, não há grande coisa para salvar.
"Nada se aproveita, ouviu? N-A-D-A! Tá tudo desfeito". O vazio que Teresa Serrão evoca entulha-se no meio da Rua do Seminário. Do seu bar, "A Toca", que 20 anos de actividade e a poderosa "poncha" converteram numa referência, saem atoalhados, pacotes de chá e café, maquinaria de frio e de tostas mistas, o mobiliário imprestável pelo efeito das águas conjugado com a gravidade: "Aqui é mais fundo e veio parar cá tudo. A água subiu três metros", diz, assinalando as marcas da enxurrada no parapeito das janelas que coroam o tasco. "E agora? Agora é refazer tudo outra vez. A vida não pára, não é?".
Pelo contrário, o regresso ao tempo antediluviano é que anima as gentes, ataviadas de impermeáveis e galochas. Vassouras, pás e carrinhos de mão dominam a paisagem enlameada, interdita pela PSP aos mirones da desgraça alheia que embaraçam os trabalhos com a sua presença pasmada.
Se a Rua do Seminário é a pior - e aproveita, a meia dúzia de pombos, o recheio da loja dos chineses -, outras em redor pouco se recomendam. Paulo Moreira, gerente da Loja dos Tecidos, na Rua Dr. Fernando Ornelas, coordena o esforço das empregadas. "Em prejuízos, foi 50%", garante, mostrando uma fieira de rolos coloridos pela massa que encheu a rua larga com dois palmos de terra. "E ainda não vimos o armazém, que agora é um tanque às escuras".
As estimativas é que demore dois dias a repor a electricidade na zona, pelo que, ao som dos caterpillers e da bomba que esvazia o Anadia Shopping, junta-se o dos geradores, multiplicados rua acima. E lá no topo o frade carmelita Manuel Costa, que usa oficiar no templo do Carmo e agora oferece bolachas aos escuteiros cansados de varrer, admite a dificuldade para encontrar o verbo certo na defesa do seu credo. "É verdade que os fiéis me têm questionado sobre o paradeiro de Deus nesta altura difícil", confessa. "Mas Ele não interfere na Natureza, e isto", diz, varrendo com o gesto a rua em que se atasca uma velhota incauta, "é obra dela". E ela, a Natureza, voltou ontem a despejar chuva sobre a cidade. Como um baptismo amaldiçoado.