Foi um momento raro e único. A população de Malhadas, em Miranda do Douro, assistiu, anteontem à noite, a um concerto de piano através de uma porta. Pianista e instrumento dentro de uma sala, a porta aberta, e na rua 150 almas, silenciosas, absorvendo cada nota como coisa transcendente e rara.<br />
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A estrela da noite foi Sara Mendes. A pianista passou os últimos dias na aldeia natal da mãe, a pintora Balbina Mendes, a preparar-se para o recital de piano que, amanhã, às 21.45 horas, vai apresentar no Auditório Municipal de Vila Nova de Gaia.
É em Malhada que costuma refugiar-se para estudar e trabalhar nos seus programas musicais. No domingo passado foi assaltada por uma ideia: “Porque não dar um concerto para as pessoas da terra? Acho que estou em dívida para com elas”.
Se bem o pensou, melhor o fez. Falou com a mãe, que achou a ideia brilhante, e mãos à obra. Foram à Câmara de Miranda do Douro pedir emprestadas 80 cadeiras e fizeram passar a mensagem entre os cerca de 400 habitantes. Depois foi só preparar o alinhamento: Scriabin, Robert Schumann, Peter Feuchtwanger, Prokofiev e Debussy. Está bom de ver, pouco ou nada familiares a quem ainda fala mirandês no seu quotidiano.
O concerto seria mesmo ali, à porta do rés-do-chão que outrora foi corte de ovelhas. É que o piano centenário C. Bechstein que ali repousa há sete anos, não cabe na porta. A desmontagem tão-pouco era aconselhável. Nem valeria a pena. “Sinceramente, tocar piano ao ar livre é péssimo. Mesmo sem qualquer vento não resultaria”. Então, porquê inventar? O piano ficaria onde estava, abrir-se-ia a porta e a música haveria de escoar-se e envolver a assistência.
Estava tudo pronto. Sara, 26 anos, passou a tarde a descansar e por volta das 20 horas, já vestida como haveria de se apresentar em “palco”, dedilhou o C. Bechstein, sozinha, olhos semicerrados, os dedos por aquele teclado fora, arrancando as sonoridades com que cerca de duas horas depois havia de presentear ouvidos bem mais acostumados à gaita-de-foles. “Acho que vai ser complicado. Estou curiosa com a reacção das pessoas”.
E começou. Dois recipientes de água com velinhas a criar ambiente na sala do piano. Cá fora, as 80 cadeiras brancas ocupadas. De pé, gente que quase encheria outras tantas. Ninguém se arredou dali. No fim, “Balbinica” ou a “menina do piano”, como alguns populares a tratam, agradeceu: “Obrigado por terem vindo”. E espalhou sorrisos e beijos com a doçura com que antes acariciara as teclas. “Agora vamos servir um Porto de Honra”, convidou, enquanto a mãe aparecia com uma enorme bola doce típica de Miranda.
“Muito bem, nunca outra se tinha visto aqui”, elogiou Maria Augusta, 63 anos, enquanto Arminda Afonso, 65, traduzia por um bis de “muito bonito” o espectáculo acabado de presenciar.
“Acho que as pessoas reagiram bem”, sorria “Balbinica”. “Ela merece”, comentava a mãe, Balbina. “Um concerto extraordinário. Ninguém conhecia verdadeiramente este talento da nossa terra”, orgulhava-se o presidente da Junta, Esmeraldino Fernandes.
Depois do programa intimista na aldeia, Sara regressa amanhã à vida profissional que escolheu aos 14 anos. Começou a estudar piano tinha cinco e aos 17 rumou à Rússia para frequentar o Conservatório de São Petersburgo, terminando a licenciatura em 2007. Desde então tem tido uma carreira profissional preenchida principalmente na Rússia e na Suíça, onde reside. Viver em Portugal? “Não. Quero desenvolver projectos em Portugal mas vou manter-me na Suíça”, esclareceu.