Rui Moreira: "Estado não tem recursos e atira para as autarquias. Vamos ser tarefeiros"
Há anos que o presidente da Câmara Municipal do Porto arremete contra o atual processo de descentralização. Acusa o Governo de transformar os autarcas em tarefeiros: passa os encargos com os funcionários, com as obras e até com a limpeza. Mas, não só não paga o preço justo, como nada cede na autonomia de gestão.
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Lutou sempre contra o atual processo de descentralização, o que demonstra, pelo menos, coerência. Manter essa posição a uma semana do fim do prazo limite para a descentralização na Saúde e na Educação demonstra o quê, teimosia?
Não é teimosia. A nossa maior preocupação neste momento é a Educação. Recebemos uma carta da Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares (DGESTE) e a senhora ministra [da Modernização do Estado e da Administração Pública, Alexandra Leitão], em declarações ao JN, afirmou que a descentralização se vai concretizar, na área da Educação, no dia 1 de abril. A questão é que há um conjunto de matérias que permanecem em aberto e que aliás faziam parte do quadro legislativo. O Governo e os serviços do Ministério da Educação não trataram do assunto atempadamente e nós somos confrontados com isto: no dia 1 de abril, vamos receber quase mil trabalhadores na Câmara do Porto, o que representa um acréscimo direto de mais de 30% dos efetivos municipais. E, depois, temos o problema fundamental, que é a de não ficamos com nenhumas competências específicas, ou seja, não há, em termos daquilo que é o modelo educativo, nenhuma evolução.
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Perante a inevitabilidade, não teria sido melhor preparar a transferência atempadamente, em vez de o fazer, digamos, em cima do joelho?
Nós somos capazes de a fazer. Gostaria de tranquilizar os trabalhadores que, provavelmente, virão para o município no dia 1 de abril. Nós estamos preparados. A questão é que o Estado não vai pagar à Câmara o custo que representa a transferência desses recursos humanos. E relativamente à reabilitação das escolas, o Estado usa valores do passado e diz que, por cada escola, no caso do Porto, vai transferir 20 mil euros por ano para manutenção. Mas em números aproximados, a Câmara, em cada uma dessas escolas, só para assegurar a manutenção, vai gastar cerca de 70 mil euros. Vai haver um défice acrescido. Como qualquer pessoa compreende, não se consegue manter uma escola secundária com 20 mil euros por ano.
"As autarquias, mesmo que queiram, não podem melhorar nada na Educação. Nada!"
É por isso que fala em 16 milhões de euros de custos adicionais, por ano, só com a Educação?
Os 16 milhões são na globalidade, com a descentralização. Na Educação admitimos que, em termos de recursos humanos, haverá uma diferença de cerca de um milhão de euros. E não conseguimos contabilizar ainda os serviços de limpeza e higiene e telecomunicações. Porque o Estado está a transferir verbas que têm a ver com o que gastou durante a pandemia. Ora, as escolas agora gastam mais, porque vão estar abertas. E depois temos a questão da manutenção. Quando somamos isto tudo estamos a falar num envelope financeiro que nos vai fazer falta, e que andará pelos quatro a seis milhões de euros.
Mas afinal o que é que ganha o cidadão com a passagem da gestão das escolas para as autarquias?
Não ganha nada, porque nós não podemos melhorar a Educação. Relativamente àquilo que é o serviço prestado na Educação, as autarquias, mesmo que queiram, não podem melhorar nada. Nada!
"Vamos ser os tarefeiros da Educação. O Estado está a alijar as suas responsabilidades"
Sente-se uma espécie de contabilista da área da Educação?
Sinto que é uma tarefização. Sou um tarefeiro. Vamos ser os tarefeiros da Educação. O Estado está a alijar as suas responsabilidades. Como disse Basílio Horta, presidente da Câmara de Sintra, eleito pelo PS, ao JN, isto é uma forma de desorçamentação por parte do Estado. Mas depois ainda temos o problema da grande reabilitação das escolas. É verdade que o Governo diz que, quando for preciso, e vai ser preciso, porque vamos ter por exemplo que substituir coberturas, o Estado pagará essas obras às autarquias. Mas é o Estado que vai determinar quando é que se faz.
Diz que se sente um tarefeiro. Mas com esta transferência vem uma responsabilização social e política. Está preparado para as manifestações de pais à porta da Câmara?
Preparado estou porque acho que os cidadãos têm o direito a revoltarem-se. Mas é importante que compreendam que isto não é descentralização nenhuma. O Estado está simplesmente a dizer que não tem recursos e a atirar para as autarquias. E se é complicado para autarquia como o Porto, Lisboa ou Sintra, reparem o que será nos territórios de baixa densidade. Essas autarquias vão ser confrontadas com uma despesa adicional sem a devida compensação por parte do Estado Central.
Mas o Estado estará assim a poupar tanto dinheiro com a descentralização para as autarquias na Educação e na Saúde?
Com a Educação, com a Saúde, com a parte social... Os municípios, com algumas exceções, fizeram desde 2008/2009 um grande trabalho de saneamento das contas. E hoje não só têm melhor interface com os cidadãos, fruto de uma melhor saúde financeira, como conseguiram ter verbas disponíveis para fazer investimento. Quando a Câmara do Porto tiver despesa adicional nestas áreas da descentralização, o que vou deixar de fazer? Investimento. O nosso orçamento não estica. Os orçamentos municipais vão ter muito menos dinheiro para intervir em áreas fundamentais. Vamos ter menos dinheiro para a transição energética, para investir no transporte público, em habitação, porque, ao aumentar a despesa corrente, sem a devida compensação, acaba a nossa folga.
"Um quarto dos alunos que estudam nas nossas escolas não reside no município do Porto"
Os autarcas costumam destacar o facto de conseguirem fazer mais com menos dinheiro.
Neste caso não podemos fazer com menos dinheiro. É o Estado que nos impõe o número de funcionários, que nos diz quantos são e quem são. Não existe flexibilidade. Vamos lá a ver, todos os autarcas querem a descentralização na parte da Educação. O que gostariam é de poder intervir, definir as escolas que se mantêm abertas e quais devem ser encerradas. E até quais são os programas. Educação não é apenas tratar do edificado e da limpeza.
Incluiria a possibilidade das câmaras intervirem na formação do quadro de professores e na direção da escola?
Com certeza. As câmaras deviam poder intervir nessas matérias.
Essa seria a verdadeira descentralização na Educação?
Gostaríamos de ser ouvidos relativamente à política pública educativa do país. Mas isso vai continuar a ser decidido lá em baixo, no Ministério da Educação. Eu considero que a Educação em Portugal, principalmente a nível do Ensino Secundário, precisa de ser revista. A preparação das crianças e dos adolescentes para o acesso à universidade, mesmo em termos curriculares, não tem que ser a mesma no país todo. Ao mesmo tempo há matérias que deviam ser incluídas numa estratégia metropolitana, ou a nível das Comunidades Intermunicipais (CIM). Na cidade do Porto temos uma taxa de cobertura de população escolar de cerca de 130%, quer isto dizer que cerca de um quarto dos alunos que estudam nas nossas escolas não reside no município do Porto. São de municípios vizinhos, filhos de pessoas que vêm trabalhar para o Porto, o que é ótimo. Mas isto tem de ser visto numa ótica metropolitana.
e o Estado quer continuar a decidir tudo na Saúde, então não vale a pena encarregar-me a mim da limpeza"
Também tem criticado a descentralização na Saúde. E também nesta área as autarquias não terão hipótese de decidir nada sobre um novo tipo de gestão para a saúde local.
Há uns anos, e a pedido do vereador Manuel Pizarro [PS], fizemos um mapeamento sobre as necessidades da cidade relativamente a centros de saúde. Esse trabalho foi feito por Fernando Araújo, hoje presidente do Hospital de S. João. Identificámos um conjunto de necessidades e trabalhámos com o Ministério da Saúde nessa matéria. O centro de saúde de Ramalde é um bom exemplo da nossa intervenção. Quando passam os centros de saúde para os municípios o que é que eu gostaria de poder decidir? Onde funcionam, quais são as valências de cada um e quais os horários de funcionamento. Mas não vamos fazer nada disso.
Mas o Estado não é capaz de o fazer? Tem de ser a autarquia?
Se o Estado quer descentralizar a saúde, então deve passar essas competências para as autarquias. Se quer continuar a decidir tudo, então não vale a pena encarregar-me a mim da limpeza e higiene dos centros de saúde, principalmente quando não me paga aquilo que o serviço vai custar.
Já admitiu que o recurso à justiça que a Câmara do Porto está avaliar serve apenas para ganhar tempo. Um processo puramente político deve ser judicializado?
Eu preferia que não fosse. Mas toda a gente, concordando comigo ou discordando de mim, tem a consciência que esta não é uma matéria para a qual eu tenha acordado há alguns meses ou há algumas semanas. Eu tenho vindo a chamar a atenção que esta pseudo descentralização tem um efeito altamente nefasto até na perceção que os cidadãos têm da distribuição de poderes dentro do território. Relativamente à providência cautelar, sim, estamos a preparar um pedido, que esperamos submeter ainda esta semana, provavelmente sexta-feira [hoje], no sentido de travar a descentralização da Educação, para que o Estado possa cumprir com o que está no decreto-lei.
Acredita que com um ministro das Finanças como Fernando Medina, presidente da Câmara de Lisboa até há bem pouco tempo, isto pode ser resolvido nos próximos dias?
O problema é que depende de pelo menos três ministros, o da Educação [João Costa], o que ficar com as competências em matéria de descentralização [Ana Abrunhosa] e o das Finanças [Fernando Medina]. É evidente que ter um ex-autarca como ministro das Finanças vai permitir que compreenda o outro lado da moeda.
"Temo que a descentralização seja o enterro definitivo da regionalização. Já percebemos que vai correr mal"
Esta descentralização é só uma forma de adiar a regionalização?
Temo que seja pior do que isso. Temo que seja o enterro definitivo da regionalização. Já percebemos que vai correr mal. Todos os autarcas estão de acordo que não vai correr bem. O que isto vai dar a entender aos cidadãos é que tudo o que seja passar competências do Estado para outra entidade qualquer é mau, porque não ficam mais bem servidos. Quando, amanhã, a regionalização for referendada, as pessoas vão ter na sua cabeça que este modelo resultou num serviço pior. Acho que há alguma hipocrisia no meio disto tudo. Até há algum tempo dizia-se que não valia a pena falar em regionalização, agora que a descentralização está a correr mal, já se fala na regionalização. Pode ser uma coincidência, mas temo que não seja.
Mantém-se pessimista e não dá o benefício da dúvida a este novo ciclo governativo e parlamentar, em que parece até haver um relativo consenso sobre a necessidade de discutir a regionalização, ao ponto de pelo menos a conseguir referendar em 2024?
Eu acredito que possa haver referendo em 2024. Mas tenho a certeza que a descentralização vai correr mal. Não tanto nos grandes centros urbanos, mas nas pequenas cidades. Isso vai levar a que o cidadão desconfie da futura regionalização. Se ele vê que a sua Câmara, subitamente, com a descentralização, passou a servi-lo pior do que servia o Estado Central, não por incompetência, mas por falta de dinheiro, vai pensar assim: a minha região não vai ter dinheiro; e se e a minha região não tem dinheiro, mais vale estar no Estado Central.
Se o processo avançar, acha que faz sentido voltar a discutir o mapa das cinco regiões?
Quando olho para o país - e eu escrevi um livro recentemente sobre isso, em que destaquei o facto de haver duas macrorregiões industriais e falei do Noroeste Peninsular -, acho que esse tema poderia ser introduzido. Mas se o introduzirmos, nunca mais lá chegamos. É melhor avançar com estas regiões tal como estão e depois fazer ajustamentos.
"A boa notícia para os portuenses é que nós soubemos amealhar. Fomos a formiga, não a cigarra"
De que forma é que a crise de matérias-primas, primeiro, e a da energia, agora, está afetar a gestão da Câmara do Porto?
O que me preocupa não é a situação hoje, é a situação futura. Há um conjunto de concursos públicos que foram lançados, para obras, transportes, aprovisionamento da Câmara, em que as entidades concessionárias ou que têm de desempenhar essas tarefas se vêm a braços com enormes dificuldades. Numa obra, não vou dizer qual, uma empresa veio dizer-nos que está com um problema: o aço triplicou de preço. Isto implica um problema imediato no cumprimento dos prazos, mas também de atualização de preços. Se o tivermos de o fazer, tem de sair do nosso orçamento. Este é um primeiro problema. O segundo pode ser uma oportunidade. O aumento do custo da energia fóssil devia levar-nos a alocar mais investimento na transição energética. Mas, se a descentralização nos retira recursos de investimento, não vamos fazer a transição energética à mesma velocidade.
As autarquias estavam, genericamente, numa boa situação financeira. Veio a pandemia e uma Câmara como a do Porto teve capacidade para suportar o impacto. Soma-se a descentralização, que terá também impacto nas contas da Câmara. E agora este novo impacto do acréscimo dos custos com a energia e as matérias-primas. O Porto pode entrar numa situação deficitária?
Pelo menos a ter que se financiar fora. Vamos apresentar na segunda-feira, e espero que seja aprovada, uma revisão orçamental, uma vez que o Orçamento vai para próximo dos 400 milhões de euros. Mas ainda não estamos a contar com os impactos da descentralização. Se os tivermos, vamos ter de "roubar", anualmente, qualquer coisa como 17 milhões de euros como despesa não suportada pelo Estado. Isso tem um impacto terrível.
Ou seja, vai retirar ao investimento para gastar em despesa corrente.
Não tenho outra hipótese. Ou não invisto, ou, para poder investir, vou ter que ir buscar fora fontes de financiamento. Fontes de financiamento que vão ser mais caras. Já percebemos que as taxas de juro, por causa da inflação, vão aumentar. A boa notícia para os portuenses é que nós soubemos amealhar. Fomos a formiga, não a cigarra. Mas a situação a prazo pode ser difícil. E aquilo a que estávamos habituados, nomeadamente a redução da carga fiscal na cidade, isenções de IMI, redução do IRS (proposta pelo PSD e acomodada por nós), o preço da água, tudo isso pode vir a ser travado.
"O preço de determinadas obras, por exemplo na ponte prevista para o metro, entre Gaia e Porto, parece-me inexequível"
A presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) e da Câmara de Matosinhos, Luísa Salgueiro, sugeriu que o Governo crie uma linha de financiamento de emergência para as autarquias. Deve ser a fundo perdido ou um empréstimo?
É evidente que se for a fundo perdido é melhor. Tenho de me pôr no lugar dos meus munícipes. Mas receio que não seja a fundo perdido. Por outro lado, há um aspeto, que acho que ainda ninguém levantou e que devia ser pensado em termos europeus, relativamente ao PRR (Plano de Recuperação e Resiliência) e às suas opções. Em primeiro lugar, o prazo previsto para a conclusão das obras de investimento do PRR parece-me hoje absolutamente inexequível. E o preço de determinadas obras, por exemplo na ponte prevista para o metro, entre Gaia e Porto, parece-me inexequível, atendendo ao custo, hoje, de materiais como o aço. Ao mesmo tempo, as necessidades europeias subitamente mudaram. Talvez fosse importante revisitar o PRR, por um lado nos seus prazos, e por outro nas suas prioridades, para fazer aquilo que, de alguma maneira, previa há dois anos, por causa da pandemia, não por causa da guerra, mas que com a guerra tem mais acuidade: a Europa tem uma absoluta prioridade de reconstruir as suas cadeias de valor. Ou seja, produzir mais. Estamos a falar do aço, dos chips para os automóveis, um conjunto de coisas que nós, europeus, achámos que era mais barato comprar na China do que produzir.
A deslocalização...
Deslocalizámos aquilo que para nós é estratégico. Um exemplo, para que os leitores do JN percebam: a BMW tem uma fábrica na República Checa e essa fábrica ia buscar parte dos seus componentes à Ucrânia. A Ucrânia deixou de produzir esses componentes - e alguns até são produzidos em Portugal, por exemplo pela TMG, aqui bem próxima do Porto [Famalicão]. Neste momento a BMW relocalizou a produção desses automóveis na China. Estamos a fazer exatamente o contrário do que devíamos fazer. Não estou a dizer que a BMW esteja a fazer mal. Está a fazer por necessidade. E vamos comprar automóveis europeus produzidos na China. Eles tinham lá uma fábrica, mas era para o mercado chinês. Nós temos de fazer ao contrário e o PRR devia ser usado para reverter essa decisão e para a transição energética, agora muito mais urgente. Já percebemos que não vamos poder viver dependentes do gás que vem da Rússia.
"O PRR já não vai dar para tantas bazucas. Talvez valesse a pena reavaliar o que devemos fazer"
O PRR, a chamada "bazuca", de repente já não tem o mesmo poder de fogo. O dinheiro é o mesmo, mas vai fazer-se menos, porque as coisas estão mais caras.
Muito menos. E temos o problema dos prazos. Nós já estávamos preocupados com os prazos, por causa do problema da contratação pública em Portugal. Mas agora é diferente. O PRR já não vai dar para tantas bazucas. Talvez valesse a pena reavaliar se o que devemos fazer é estar a apostar em infraestruturas que necessitam de materiais que hoje estão artificialmente caros. Se calhar daqui a três anos, se conseguirmos reconstruir a cadeia de valor, são mais baratos. Se calhar vale mais a pena usar o PRR para garantir que temos as nossas siderurgias a produzir e depois utilizar os seus produtos. É um pouco o problema da galinha e do ovo. Mas temos de repensar.
Não é uma atitude muito popular. O que está a sugerir é, vamos lá deixar algumas obras emblemáticas por fazer, cortar menos fitas, em nome de um investimento que vai demorar a ter efeitos.
Nestas matérias espero que as decisões tomadas não sejam por razões populares. Nós agora temos um Governo com maioria absoluta, para quatro anos e meio, é a altura de os políticos assumirem as suas responsabilidades, não olhando para o calendário eleitoral, mas para a longa distância e para as necessidades da população.
Enquanto presidente da Câmara do Porto, estaria disposto a que, desde que fosse feito de uma forma equilibrada, a cidade e a região perdessem alguns investimentos em nome dessa requalificação industrial?
Da aposta na cadeia de valor, sim.