Miragaia, quatro da tarde, chuva e água a escorrer pelos bueiros. Há um par de horas que a televisão começou a falar em risco de cheias do Douro, mas a cabeleireira Maria do Céu gira a escova na cabeça de uma cliente como se nada fosse.
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Nem sequer foi espreitar o Douro passar veloz, castanho, gordo de lama e lixo. "Se tiver que tirar as coisas, tiro, tem que ser", diz, encolhendo os ombros .
Mais adiante, o ceramista Manuel Andrade já pensou na melhor forma de pôr a salvo o forno do ateliê onde expõe trabalhos seus e das crianças da comunidade. Mais do que isso, só quando receber aviso da Protecção Civil. "Estou na expectativa, não quero mudar nada já para não dar azar", diz ao JN.
Dali dos arcos, que costuma ser o primeiro sítio a alagar, até à Ribeira do Porto e, passando a ponte até Gaia, não se nota grande inquietação. Muitos dos comerciantes são também moradores na zona e o alerta não lhes alimentava pressentimento suficiente. "Com medo estamos sempre", diz Maria do Carmo, ao balcão da loja de recordações "Passarinho da Ribeira". "Depende do tempo, da maré, da agitação do mar e de Espanha", resumiu.
O tempo foi o que se viu e, quanto à maré, a preia-mar só chegaria entre a meia-noite e as duas da manhã. A Capitania do Douro anunciava o período de alerta entre as 19 horas e as duas da manhã, sendo o alerta máximo a partir da meia-noite. Ao final da tarde, faziam-se descargas com caudal máximo nas barragens de Bagaúste, Torrão, Valeira e Carrapatelo para vazar o mais possível, segundo explicou ao JN o agente Sousa Leigo. A intenção é "conter o mais possível" o caudal do rio a partir da meia-noite para segurar a invasão das águas no Porto.
Fátima Mendes, a servir petiscos na Taberninha do Manel e naturar dali, da Avenida Diogo Leite, em Gaia, telefonou ao pai, 60 anos a viver com o rio, e ele sossegou-a. "Acho que não vai haver cheia, mas se houver temos tempo de tirar tudo". Gina Sousa, dona de um pomar na Ribeira do Porto, já está habituada à "técnica do pulmão": "Isto está de maneira a ser tudo levado para o primeiro andar".
Os curiosos atraídos pelas notícias das cheias acabaram por favorecer os negócios. Fiel Santos e a mulher Gracinda estavam em casa, em Gondomar, e decidiram levar os netos a ver o Douro subir: "Viemos apanhar um bocadinho de ar e ver as cheias". Alzira Alves também tirou da ideia da neta Bárbara a ida ao centro comercial. "Vim mostrar à minha neta [o rio cheio] porque a minha avó também me mostrou a mim", disse.