Perdeu o emprego, a casa, o carro e a família. Manuel Pedro Soares vive numa barraca com o cão, os 45 patos e cinco porquinhos-da-Índia.
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É o guarda-rios que a Maia, oficialmente, não tem. Guarda as margens, fotografa lagartas, caracóis, aranhas, insetos de carapaça verde e outros bichos que o deixam encantado nas margens do rio Leça, junto à Ponte de Moreira, onde vive num barraco com o seu cão Rory, os porquinhos da Índia e os 45 patos que liberta e deixa nadar nas águas nem sempre limpas e bem cheirosas do rio. Manuel Pedro Soares é um sem-abrigo especial, amigo dos animais e do ambiente, e que na vida gostaria apenas de ter uma coisa: um teto onde se abrigar.
O pedido para uma habitação social foi há muito feito, mas a burocracia dos serviços públicos tem adiado esse sonho. Manuel Pedro, de 52 anos, teve uma vida anterior como qualquer cidadão "normal". Era marceneiro, trabalhava numa oficina em Rio Tinto, tinha casa, carro e uma família. Mas a crise de 2007 veio baralhar os dias que até então corriam tranquilos. As encomendas começaram a escassear e os fornecedores desapareceram. A oficina fechou, o emprego acabou e com ele ruiu toda uma vida. "Perdi tudo o que tinha. Até a família", conta Manuel Pedro, que "há muito" não vê o filho, agora com 19 anos.
Com vergonha da situação em que tinha caído, foi para Guimarães onde ninguém o conhecia e começou uma vida de sem-abrigo, mas acabou por regressar à zona do Porto. Primeiro, para uma quinta abandonada na Maia, mas que deixou assim que o proprietário descobriu a ocupação, depois ali, junto ao arco da Ponte de Moreira, não muito longe do parque criado em 2016 e que faz parte do projeto intermunicipal do corredor verde do Leça. Ali vive com o cão, os porcos da Índia e os 45 patos, 30 adultos e 15 pequenitos.
DESCARGAS POLUENTES
Faz a seleção das raças e tem patos de todas as cores e tamanhos. Não os mata nem os come e só vende algumas das crias "na condição de virem a ser bem tratadas". Preocupa-se com a alimentação de todos os bichos, mais do que com a sua. Recolhe plantas e cria refeições saudáveis e sustentáveis para os animais.
"Vejo necessidade de fazer isto porque a natureza precisa urgentemente que se dê uma grande volta. Conheço de perto a poluição deste rio. Não é toda proveniente daqui, mas a principal advém do Parque de Moreira da Maia, do corredor verde, da capital verde da Maia. Isto é inconcebível numa sociedade moderna, numa civilização democrática e que se diz amiga do ambiente! As descargas chegam a ser diárias", explica Manuel Pedro.
Fez denúncias à GNR, Junta de Freguesia e Câmara, mas "infrutíferas". Ultimamente, usa as redes sociais. Ofereceram-lhe um telemóvel com 5G e publica fotografias do que vê na sua página do Facebook. Já falou com o PAN, Os Verdes e partidos da Oposição, pois não desiste da sua "luta ecológica". Manuel Pedro tem o apoio da população e alimentação do Centro Comunitário de Vila Nova da Telha, propriedade da Santa Casa da Misericórdia da Maia. Só recentemente renovou o cartão de cidadão, ficou inscrito no Instituto de Emprego e Formação Profissional, vai iniciar um curso e candidatou-se ao rendimento social de inserção (RSI) e a uma habitação social que tarda em chegar.
Quer levar consigo o Rory, que resgatou da rua e adotou, e encontrar um terreno para alguns dos patos. Os restantes ficarão no rio, "o seu habitat natural", que visitará para deles cuidar e alimentar.
VENDE OVOS
Para ter algum dinheiro para o tabaco, o seu único vício, vende os ovos que não consome na alimentação, até para "controlo da população" de patos.
As crias vão também saindo para novos "donos responsáveis" e apenas uma ficará para sempre com o sem-abrigo. Trata-se de Esperança, que ajudou a nascer retirando-a do ovo do qual tinha dificuldades em sair. "Agora pensa que sou a mãe dela", diz.
Quase que em sinal de gratidão, segue-o para todo o lado.
Ajudas
Único apoio advém de centro comunitário
Para além da ajuda de muitos anónimos, Manuel Pedro recebe apenas o apoio do Centro Comunitário de Vila Nova da Telha, que pertence à Santa Casa da Misericórdia da Maia. Há mais de 15 anos que esta instituição acompanha e encaminha indivíduos e/ou famílias em situação de risco social, com vulnerabilidades em diferentes vertentes (económica, social, psicológica, entre outras), assegurando assim um trabalho de articulação com as diversas estruturas públicas e privadas presentes no concelho. Manuel Pedro beneficia do Programa de Emergência Alimentar (entrega diária de refeições e cabazes).
O JN contactou tanto a Junta de freguesia como a Câmara da Maia no sentido de perceber como se encontra o processo de realojamento deste sem-abrigo, mas não obteve respostas.
A reter
8200 sem-abrigo em Portugal
Área Metropolitana de Lisboa lidera com 4786 pessoas em situação de sem-abrigo. Segue-se a Área Metropolitana do Porto, com 1213.
Maioria são homens
A maioria dos sem-abrigo são homens com idades entre os 45 e os 64 anos, sem teto ou sem casa há até um ano. No último levantamento realizado em 2020 contabilizaram-se também 734 casais.
Álcool e desemprego
As causas estão associadas a dependência de álcool ou de substâncias psicoativas (2442), desemprego ou precariedade no trabalho (2347) ou insuficiência financeira associada a outros motivos (2017).