Idosos juntam-se em jardins, praças e junto à praia para jogar às cartas e conviver. Tradição resiste, apesar da pandemia ter "ceifado alguns dos jogadores".
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Mais do que o vício de jogar às cartas, é a necessidade de convívio que faz com que muitos idosos do Porto se juntem em jardins e praças para, de baralho na mão e olhos postos na mesa, colocarem a conversa em dia, recordando tempos antigos e afastando a solidão. A tradição tem muitos anos e nem a pandemia foi capaz de a extinguir. Por terem contribuído durante décadas para o Estado, reclamam agora por melhores condições no espaço público que frequentam, nomeadamente casas de banho. Muitas delas continuam fechadas.
O jogo da sueca nos jardins da cidade regressou no início de junho. Durante o confinamento provocado pela pandemia, espaços como o Jardim de S. Lázaro, a Praça do Marquês de Pombal ou o Jardim de Arca d" Água estiveram encerrados e o convívio não era permitido. Seguiram-se meses de medo que inibiram os idosos de sair de casa por se lembrarem dos colegas de jogatina cujas vidas foram ceifadas pela covid-19.
"Já conheci aqui muita gente. Há uns anos éramos mais, mas depois da pandemia houve muita gente que desapareceu. Uns morreram, outros deixaram de vir com medo", diz Arnaldo Silva, 84 anos, de Rio Tinto (Gondomar). "O convívio é grande. Jogamos umas cartas e fala-se de futebol. Não se joga a dinheiro, é tudo pelo divertimento, ganhe-se ou perca-se", conta.
No Marquês há quatro mesas de jogo, concentradas junto ao quiosque, em frente à igreja. Em cada uma delas estão quatro idosos sentados, rodeados por mais oito ou dez, em pé, à espera de vez. Entra-se no jogo quando uma das duplas sentadas perde. "Há dois anos que não vinha aqui por causa da pandemia. Vejo que uns mais velhos e outros mais novos já foram. Somos menos. Havia uma mesa onde paravam os intelectuais, dois ou três deles morreram", explica Manuel Dias, 84 anos, que vem da Boavista (Porto) para jogar.
Faltam WC
O grupo chegou a jogar junto à renovada Biblioteca de Pedro Ivo, que está fechada, e Aníbal Ferreira mostra-se revoltado por continuarem encerradas as casas de banho sob o redondo palco do coreto. "O pessoal não tem sítio para urinar. As pessoas fazem o xixi nos canteiros à frente de mulheres e crianças", denuncia. Quando a igreja do Marquês tem as casas de banho abertas, os jogadores deslocam-se ao templo ou então ao Pingo Doce, embora isso nem sempre seja do contentamento dos responsáveis pelo supermercado.
"As pessoas que vêm para este convívio no jardim já trabalharam e continuam a pagar os seus impostos, por isso merecem que o WC esteja aberto", acrescenta Aníbal, apontando para a coluna de metal, junto à entrada para a estação de metro do Marquês, corroída pela urina.
Deolinda joga desde 1971
Está sozinha numa das mesas, abandonada pelos colegas que "foram à sua vida". Faz uma pausa nas bolachas que está a comer e dirige-se para o coberto sob o passeio superior da rotunda da Praça de Gonçalves Zarco, a do Castelo do Queijo. "Venho para aqui desde 1971. O meu falecido tinha carro e, quando nasceu a minha mais nova, ele deixava-nos aqui na praia e ia trabalhar. Cuidava das miúdas e jogava cartas. Tive cinco filhos e criei-os sem pai, que morreu pouco depois num acidente de viação", conta Deolinda Pereira Dias, 87 anos, natural de Barcelos.
As cartas sempre foram na sua vida uma distração. "Já eram em catraia quando ia para o monte com as ovelhas. Jogava cartas e à bola, escorregava nos rochedos", recorda entre gargalhadas. "Agora é mais para matar a solidão. Adoro isto. Só tenho pena é que os meus rapazes andem muito nervosos por causa da covid. É um convívio maravilhoso e foi a coisa melhor que Deus me deu no fim da vida. Até me vêm as lágrimas aos olhos", confessa Deolinda, de pele morena pelos longos dias ao sol.
Convívio junto à praia
Deolinda é quem manda neste grupo. No verão, há três mesas junto ao passadiço. No inverno, chegam a ser cinco as mesas de jogo sob o coberto. Noutro ponto, em mesas improvisadas nos rochedos junto às paredes do forte e lado a lado com os veraneantes estendidos no areal, estão mais quatro mesas de jogadores. Há mais duas mulheres.
"Já venho para aqui jogar às cartas há mais de 30 anos. Desde que me reformei. O ambiente é muito bom. A gente diz umas graças sem problema nenhum. É um convívio sem bebidas", defende José Saraiva Alves, 79 anos, que de inverno prefere jogar cartas ou no Café Progresso ou no Padroense. Os colegas abrigam-se dentro do parque de estacionamento. Foi assim sempre, mesmo durante a pandemia. "A Polícia fechava os olhos", desde que os idosos usassem máscaras, confessam. Nem o frio e a chuva demovem estes portuenses que recusam envelhecer encerrados em casa.
APONTAMENTOS
Jogos estimulam
A par do artesanato, jardinagem, caminhar e fazer exercício, música, dança, leitura e escrita, também todo o tipo de jogos são considerados bons estimulantes para os idosos.
Reforça capacidades
Diversos estudos médicos afirmam que os jogos de cartas, para além de uma fonte de divertimento, reforçam a concentração, a coordenação e a memória.
Ajuda terapêutica
Jogos simples com pares são muitas vezes indicados para pessoas com demência. O participante é convidado, desta forma, a partilhar memórias e envolver-se em conversas.