Memória e história de um mundo de resistência. Entre iscas, pataniscas e malgas, incursão pelas mais tradicionais e autênticas adegas que sobrevivem na cidade.
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Da "Mamas Gordas", assim batizada e celebrizada por via dos dotes republicanos de uma célebre taberneira da Areosa, restam só fugazes lembranças do que foi, até aos anos 1980, uma das tascas mais emblemáticas de um mundo quase resoluto, que esbraceja contra pubs, snacks, wine houses e trattorias, a fazer pela vida e pela memória das pipas, da receita, do traçadinho e do penálti. Do presunto, da orelha, do chispe, dos rojões ou das tripas. Das pataniscas e das iscas. Eis, então, um roteiro nada exaustivo de petiscos e malgas, na ronda por tascas, tabernas e adegas, emblemas do Porto e atração de turistas ávidos de uma certa autenticidade retro.
Ali na Areosa, a freguesia dos tempos atuais acumula-se mais no "takeaway" de uma casa de "sushi" - oh, paradoxo! -, na proximidade quase insolente do que durante décadas foi a tasca da tal taberneira, de cuja notoriedade anatómica sobrou uma marca indelével. "Disso não sei. Nunca reparei. Já não me recordo. Mas lembro-me bem da senhora a fritar as iscas, aqui mesmo no passeio. Não lhe faltava clientela", recorda um residente da Areosa, Américo Rocha, de 72 anos. "Comia-se lá muito bem", acrescenta Arnaldo Coutinho, de 86 anos, comerciante ali instalado desde 1973 e que durante muitos anos só teve de atravessar do pronto a vestir até ao outro passeio da Rua D. Afonso Henriques para "comer uns rojões como em mais lado nenhum".
Tal como a "Mamas Gordas", muitos destas casas estabeleceram-se com nomes muito próprios, alcunhados por situações particularíssimas, fossem da própria localização ("O Escondidinho", "O Retiro", "O Buraquinho") ou de traços marcantes dos proprietários, como o que batizou "A Badalhoca".
"A Badalhoca"
Segundo rezam as crónicas, a fundadora da casa afamada pelas sandes de presunto não era propriamente o mais fiel certificado ISO de higienização. Para cativar a freguesia, toda masculina, a senhora também se punha "em posições pouco próprias frente à clientela, provocando assim o pessoal que lá passava", relatam os testemunhos recolhidos por Raul Simões Pinto na coletânea de estórias e memórias de "As Tascas do Porto".
"Hoje, quantas tascas existem no Porto? Talvez algumas dezenas, ou pouco mais. A cidade perdeu muita população nos últimos anos. Deixou de ser uma cidade de trabalho para ser uma cidade de serviços. É importante que se mantenham e que dinamizem as tascas que restam, pois fazem parte integrante da cultura e do património da cidade", acrescenta o autor. "Lugar de confraternização e de encontro, troca e discussão, serviam igualmente de acolhimento às atividades e formas de associativismo da vizinhança, que nela encontrava um pequeno espaço organizativo", remata o historiador Hélder Pacheco, que assina o prefácio.
Arnaldo Coutinho, o freguês da "Mamas Gordas", recorda um estabelecimento de inclusão social. "Havia gente de todas as origens, mas era mais de classe média", sublinha, também a relembrar o que, afinal, era uma das funções primordiais das tabernas, como espaços de resistência cívica e de tolerância vigiada, nos tempos da ditadura.
Dragões ao alto
O mesmo controlo, mais ou menos tácito, perdura num dos balcões mais icónicos do Porto, o do "Alfredo Portista", que, como o próprio nome indica, é um estabelecimento de culto do Dragão. Ali, no n.º 14 da Rua do Cativo, respira-se portismo por todos os poros, num ambiente com toda a iconografia e todos os heróis azuis e brancos. De Pinga a Pavão, de Ademir a Cubillas, de Gomes a Deco, de Hulk a Jardel, tudo ali é de grande exaltação clubística, na recolha museológica de décadas, desde que Alfredo e Maria da Conceição, falecidos há dois anos, fundaram a casa, nos anos 1960.
A tolerância e abertura aos rivais só não ficam à porta porque o herdeiro do estabelecimento preza toda a clientela. "Aquele cliente ali é benfiquista. Mas, como dizia o meu pai, o que é preciso é ter respeito", diz Paulo Tavares, que, aos 48 anos, abandonou a carreira no futebol, como jogador e treinador, para dedicação exclusiva ao negócio de família. "Nasci aqui, vivi aqui. Agora, cabe-me tomar conta da casa", remata.
Uma centena de metros acima, na Rua Cimo de Vila, outro reduto de dragões, na Casa Louro. "Aqui somos mesmo portistas", afirma Paulo Nogueira, de 45 anos, um ex-futuro técnico informático também reconvertido ao negócio familiar, dirigido pelo pai, António Nogueira, de 68 anos, que ali trabalha desde os 14. "Desde os tempos em que se vendiam dez presuntos por dia. Agora, se se vender um, já é bom", observam.
"A clientela mais frequente é a mesma de sempre. Mais do que clientes, são amigos, já de muitos anos. Os outros, na maioria deles, são turistas que acham muita piada aos presuntos e à tipicidade da casa. Tiram fotos, bebem um copo e partem. Também são importantes. Cabe-nos manter a autenticidade da casa. As nossas tascas fazem parte da cultura da cidade", conclui Paulo Nogueira.
Campanha
À entrada para o Estado Novo (1926), as tascas foram também percursoras de uma notória campanha do regime. Tudo numa frase: "Beber vinho é dar de comer a um milhão de portugueses".
Marketing
Se não registam pregões dos tascos, os compêndios do marketing perdem alguns dos anúncios mais geniais. Amostra: "O camelo é o animal que mais tempo se aguenta sem beber. Não sejas camelo".
Factos
Uma centena de tabernas espalhadas por toda a cidade
Não há números oficiais, mas calcula-se que o Porto tenha cerca de uma centena destas adegas típicas. A maioria sobrevive nas zonas de maior frequentação turística e não resistiu a uma certa adulteração. Nas zonas históricas, como nos Caldeireiros ou nos Lóios, ainda há quem preserve a genuinidade possível. É o caso da centenária Casa Costa, na Rua de Trás. Também o da Adega Vilã Meã, que guarda a traça rústica da origem do fundador. Mais recentes, dirigidas ao "boom" turístico, todas criadas entre 2017 e 2020, as Tasquinhas dos Lóios, do Largo e do Canto respeitam o granito do Porto antigo. Vinhos, petiscos, pão rústico, presunto e queijos são as especialidades.
A revolta dos taberneiros contra monopólio criado pelo Marquês
Ponto de confluência de rotas internacionais do comércio e cidade em grande expansão, o Porto contava, no século XVIII, com cerca de mil tascas. Não havia restaurantes e eram estes taberneiros que escoavam grande parte da produção do vinho. Até que um decreto do Marquês de Pombal, em 1757, mandou fechar grande parte desses estabelecimentos, precisamente para preservar o monopólio da Companhia das Vinhas do Alto Douro. Tasqueiros, tanoeiros e armazenistas da cidade saíram à rua, a 23 de fevereiro, no que ficou conhecido como Motim dos Taberneiros. A tropa ocupou a cidade. Vinte e seis revoltosos foram condenados a pena capital.
As portas do "faroeste" que Salazar tornou obrigatórias
Sendo, por natureza e definição, também palcos de ócio e de partilha, as tascas e adegas do Porto, como as de todo o país, foram frequentemente vigiadas com um certa indulgência, sobretudo no terceiro quartel do século XX. A polícia política tolerava os jogos de azar e outras instituições, como a bisca, a sueca e o dominó, mas tinha perfeita noção de que estes estabelecimentos, muito em surdina, também eram espaços do reviralho e de resistência ao regime. Daí que, ainda hoje, sobrem alguns lembretes dessa vigilância quase discreta, tais como as portas de vaivém, à "faroeste", obrigatórias, por decreto de Salazar, para se limitar a intimidade da clientela.
A Rádio Moscovo e o copo de água que denunciava os bufos da PIDE
Se não constava em nenhum cardápio das tascas, a não ser, eventualmente, para lavar loiça, a água sempre tinha uma utilidade indispensável e de confiança a toda a prova. No auge da ditadura, quando ouvidos discretos se encostavam à Rádio Moscovo ou a Rádio Argélia e às emissões dirigidas desde o exílio por opositores a Salazar, um copo em cima do aparelho de rádio servia como contraespionagem e alerta para a presença de agentes da PIDE. O processo nunca cuidou de ser verificado, mas sempre constou que o copo começava a abanar e a respingar na aproximação de qualquer bufo, o que dava tempo ao tasqueiro para sintonizar os fados.