Estudo científico com autor português relaciona doenças ulcerativas como a sífilis com expansão do vírus.
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As epidemias de sífilis e outras doenças genitais com elevada incidência nas cidades emergentes de África do início do século XX ajudaram a sida a instalar-se, pela adaptação de um vírus até aí só de símios. A teoria é agora avançada por João Dinis de Sousa.
A oportunidade de o vírus VIH-1 passar de chimpanzés para o ser humano, viabilizando o que viria a ser a pandemia de sida, terá surgido entre os anos 20 e 30 do século passado, ou talvez mesmo logo a partir de 1910. Lugar provável: Kinshasa, a cidade colonial emergente no então Congo belga. Forma de transmissão humana inicial: contacto entre uma população predominante de trabalhadores masculinos e prostitutas, bastando haver em qualquer deles doenças que causam úlceras genitais (sífilis e o cancro mole ou cancróide são exemplos, tal como o herpes tipo 2).
Esta tese é defendida num estudo ontem divulgado pela revista científica online "PLoS ONE". O primeiro autor da pesquisa, João Dinis Sousa, contou com a colaboração de investigadores de três laboratórios.
João Dinis Sousa explicou ao JN que centrou a sua atenção nos factores presentes em África no início do século XX que pudessem ter tornado epidémico o vírus. Já se sabia que era a partir de África e dos chimpanzés que a estirpes do VIH-1 haviam surgido (a partir do vírus de imunodeficiência dos símios, SIV, também presente em macacos e gorilas).
Arquivos esmiuçados
Um dos trabalhos a que João Dinis Sousa se dedicou nos últimos anos foi o de consultar arquivos coloniais de França e da Bélgica e pesquisar aí e em revistas de época dados sobre medicina, incluindo portuguesas. Essa tarefa, que incidiu sobre países da África equatorial e da África ocidental, focou várias cidades, grupos étnicos, hábitos de circuncisão. Neste último aspecto, verificou que nas cidades em que terá emergido qualquer das quatro estirpes do VIH (duas para o 1 e duas para o 2) havia menos homens circuncisados.
Disse ao JN o primeiro autor do estudo que o levantamento destes dados correspondeu a pesquisa no âmbito da etnografia e antropologia, mas sempre na mira do vírus e do seu ponto e oportunidade de transferência para os humanos e posterior expansão. Numa fase inicial, tendo em conta a época, admite João Dinis de Sousa que a sida possa ter sido confundida nas suas manifestações com a tuberculose ou outras doenças oportunistas.
Kinshasa é a hipótese que o estudo lança como mais favorável para a emergência da sida e que poderá explicar como é que, havendo desde sempre homens a caçar macacos e chimpanzés (podendo contagiar-se no corte da carne ou com carne mal cozida) só no século XX o vírus tenha ultrapassado a barreira da espécie.
A teoria avançada pela equipa, que recorreu a simulação de modelos epidemiológicos, é a de que o vírus não tem hipóteses de proliferar se não houver doenças ulcerosas genitais transmitidas mesmo que por poucas pessoas. Kinshasa, Leopoldville à época, era uma plataforma de desenvolvimento colonial, uma cidade-estaleiro com uma mulher para quatro homens. João Dinis Sousa afirma ter encontrado aí o elo que não esteve presente nas aldeias da época também estudadas.