Alguém dizia esta semana, a propósito da reorganização da rede de tribunais, que o Governo não teve em linha de conta a realidade do país. Não seria de estranhar uma observação deste tipo a respeito de uma qualquer reforma, desde logo porque há sempre lógicas corporativas instaladas.
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Contudo, quando as críticas são oriundas de autarcas, servidores e utentes e se repetem em diferentes setores da Administração Pública, é legítimo pensar que existe um processo de reformas que ignora ostensivamente a realidade. E que nesse exercício de pseudorracionalização há um perdedor sistemático: o interior.
A reforma dos tribunais já teve várias versões. Na mais recente, o Ministério da Justiça avança com o encerramento de 47 tribunais, sendo que alguns serão convertidos nas chamadas secções de proximidade. Bem se percebe que este é mais um artifício para enganar os municípios penalizados, criando a ilusão de que o conceito da proximidade permanece intocável, quando o que vai ficar será um mero balcão para processar papel. Não demorará muito que à dita secção, que de resto não é um tribunal e não terá julgamentos, sejam retirados recursos até ao ponto em que desaparecerá. Está nos livros, é assim que se faz para doer menos.
Neste exercício de reorganização, os municípios do interior são, de novo, os mais penalizados. Vila Real perderá quatro tribunais (Boticas, Mesão Frio, Murça e Sabrosa) e Viseu acompanhará a mesma tendência, com outras quatro baixas (Armamar, Castro Daire, Resende e Tabuaço). O ambiente de revolta está instalado entre os autarcas, incluindo aqueles que foram eleitos pelo partido do PSD.
O Governo da coligação de Direita especializou-se em dividir os portugueses, num ataque sistemático e inédito à coesão social e territorial. Trabalhadores do privado contra funcionários públicos, pensionistas contra ativos, população do interior contra população do litoral. Tudo vale para que a folha de cálculo do Orçamento vomite o número que se procura, seja ele um défice ou outro qualquer indicador que mascare a real situação do país. O racional é simples: empobrecer a generalidade do país de forma a manter o centro intocado. O resultado desta conceptualização é um país com um par de milhões de cidadãos de primeira, acantonados numa pequena parte do litoral em torno de Lisboa, mas também com oito milhões de cidadãos de segunda, distribuídos pelo resto do território.
De entre os cidadãos de segunda, há um grupo que é sério candidato a fundar uma terceira categoria: são aqueles que vivem no interior e que veem todos os dias o Estado a fugir-lhe entre os dedos. Na "solução final para o problema do interior" que foi posta em marcha, fecharam as escolas primárias, as maternidades, os centros de saúde, as juntas de freguesia, as estações de correios. As linhas férreas foram desativadas. Foi-se o pouco emprego público que existia. Apareceram as portagens nas autoestradas, mais caras no Nordeste do que em Cascais. Os transportes públicos reduziram a sua frequência, nalguns casos até à extinção. Os voos para Vila Real e Bragança foram suspensos. O helicóptero do INEM muda-se para o centro urbano maior. Vão fechar as repartições de Finanças. Vão fechar os tribunais.
A estes cidadãos de segunda, candidatos a cidadãos de terceira, resta-lhes trabalhar, agarrar-se à terra e pagar impostos, às mesmas taxas que pagam os seus concidadãos de primeira. Pagar para manter as funções do Estado (educação, saúde, justiça...), justamente aquelas que lhes são subtraídas mas que na capital são inalienáveis. Tudo se fecha no interior indefeso e pobre. Mas nada se consegue fechar em Lisboa. Veja-se o movimento de defesa da Maternidade Alfredo da Costa ou a campanha pelo Colégio Militar, que teve tanto de dispendiosa como de ridícula.
Os académicos costumam dizer, em tom de brincadeira, que a Universidade é um excelente local para trabalhar, com o único inconveniente de ter alunos. Acredito hoje que há no Governo quem pense, não por brincadeira, que Portugal é um excelente país para viver, com o único inconveniente de ter interior.