A reforma do Estado e a economia do estado-plataforma
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O XXV governo constitucional, recentemente empossado, tem um novo Ministro Adjunto e da Reforma do Estado. Este é um bom pretexto para algumas reflexões a propósito, algumas das quais já constam de escritos meus anteriores sobre o assunto.
A reforma do estado-administração tem muitos ângulos de observação e abordagem, desde logo no plano jurídico-institucional, por via, por exemplo, de privatização, fusão e extinção de serviços, medidas de desconcentração e descentralização, mudanças de regimes da função pública e, mesmo, reformas constitucionais. Muito provavelmente, a política legislativa e regulamentar adotará um mix de todas estas medidas. Mas não é disso que agora se trata.
Perante a Grande Transformação Tecno-Digital em curso não se trata, apenas, de converter um estado-informático num estado-digital, mas de converter uma cultura organizacional hierárquica e vertical, o estado-silo, numa cultura organizacional participativa e colaborativa, o estado-plataforma. Com efeito, o que aqui sugerimos é uma alteração profunda no sistema de valores e na cultura política do estado-administração, sabendo nós que o estado central, o estado local e o estado social são os pilares essenciais do velho estado clientelar do século XX e, desde logo, as principais fontes de alimentação do sistema político-partidário ainda vigente. Ora, a revolução tecno-digital põe em causa não apenas a intermediação económica e comercial, mas, também, a intermediação política e a fonte de legitimação democrática e representativa tal como nós a conhecemos nas sociedades ocidentais, razões mais do que suficientes para que o conservadorismo político-partidário tome as medidas defensivas e cautelares que se justificam nesta conjuntura. Seja como for, a revolução tecno-digital é imparável e mudanças profundas ocorrerão nas relações entre a sociedade civil, o estado e as plataformas digitais. Vejamos algumas dessas futuras interações.
Em primeiro lugar, as tecnologias digitais, devido à sua própria natureza, atomizam relações e relacionamentos e transformam tudo em produtos e serviços, ou seja, tudo está montado para gerar valor e ser um negócio privado. As plataformas serão o dispositivo tecnológico dessa atomização-privatização-personalização das relações no próximo futuro. Não há, por enquanto, pensamento estruturado nem um guião para a ação no setor público, no que diz respeito às novas missões do estado, ao novo perímetro do estado e às zonas de interface entre o estado-administração e as plataformas de cidadãos em muitas áreas que relevam da modernização político-administrativa.
Em segundo lugar, as tecnologias digitais põem a nu o enorme passivo acumulado nos últimos 30 anos no que diz respeito ao envelhecimento da função pública e à falta de renovação dos quadros da administração; por outro lado, usámos e abusámos de serviços em regime de outsourcing que, gradualmente, desclassificaram os serviços do estado-administração e os perfis profissionais da função pública, ao mesmo tempo que o lobbying corporativo ia capturando e esvaziando muitas funções técnicas do estado.
Em terceiro lugar, no quadro de uma política de transformação tecno-digital, a modernização administrativa tem uma natureza meramente instrumental, não muda a cultura organizacional e, na prática, confunde-se com mercados públicos e negócio informático; como todos sabemos, a política tecnológica atual está muito associada à inovação incremental e à obsolescência programada, por razões que se prendem com o negócio digital e a satisfação da clientela corporativa que rodeia o estado-administração, ou seja, é preciso estar avisado para não cometer erros de avaliação em matéria de modernização administrativa.
Em quarto lugar, na última década, por razões que são conhecidas, Portugal experimentou uma mistura explosiva que juntou o envelhecimento da função pública e o congelamento das carreiras e remunerações com uma quebra acentuada do investimento público em matéria de transformação digital do aparelho técnico-administrativo do estado; este facto, que, só por si, viola princípios e direitos adquiridos dos funcionários públicos, significa, muito provavelmente, que não estarão reunidas as condições sociopolíticas e motivacionais para acolher uma nova cultura organizacional que põe em causa a lógica dos direitos adquiridos e a segurança das carreiras da função pública.
Em quinto lugar, a economia das plataformas abre uma oportunidade e uma via privilegiada de modernização do estado-administração no que diz respeito à política de descentralização de atribuições e competências para as comunidades intermunicipais, os municípios e agrupamentos de freguesias e, de uma maneira geral, à configuração e gestão de serviços públicos; estão em causa não apenas as missões clássicas do estado-administração como, também, o próprio perímetro da ação administrativa do estado e, ainda, a própria noção de função pública, tal como elas são convencionalmente conduzidas e reproduzidas no modelo silo, para além de implicar muito mais investimento na cobertura digital do território.
Em sexto lugar, um dos aspetos centrais da nova cultura organizacional colaborativa e participativa é o grau de literacia digital da população em geral para lidar com uma nova geração de serviços ao público; não me refiro à manipulação de dispositivos inteligentes, reporto-me a questões de cultura digital que implicam a coprodução de serviços ao público em vez de serviços públicos; esta transição da cultura informática para a cultura digital colaborativa é plena de consequências sobre o sistema de educação em geral, e em particular no que diz respeito à revisão do sistema educativo e formativo que precisa de ser assumida com rigor e frontalidade.
Em sétimo lugar, a economia do estado-plataforma tem um impacto direto na utilização dos dados pessoais, se quiser melhorar a qualidade dos serviços prestados aos cidadãos-utentes; de facto, um aspeto central da nova cultura organizacional é o acesso livre, sob certas regras e condições, aos dados públicos detidos pelas diversas estruturas setoriais do estado-administração; desde logo, acesso livre e horizontal entre serviços públicos, depois, acesso livre, sob certas condições a outros atores e agentes, e desde que a transparência dos dados públicos não afete a privacidade da informação particular.
Em oitavo lugar, o acesso aos dados públicos cria uma grande zona de interface com a sociedade civil e abre uma via experimental para testar uma nova administração pública de participação interativa; este é, porventura, o pretexto que faltava para fazer crescer o estado-plataforma em múltiplos modelos e formatos de plataforma colaborativa e, assim, abrir o caminho para novas categorias e tipologias de bens e serviços, que nesta altura não é possível prever, como, por exemplo, os comuns colaborativos em regime de coprodução com o cidadão-utente,
Em nono lugar, e à imagem do que acontece em França, esta política de abertura dos dados públicos é uma oportunidade única para que sejam criados núcleos de inovação ou start-up internas à administração, que trabalham em estreita cooperação com incubadoras e start up exteriores à administração; estes núcleos de inovação no interior da administração podem e devem dar origem a start up que emergirão como extensão de serviços públicos.
Por último, está em causa, doravante, a política regulatória do estado-plataforma; de facto, acesso livre e governo aberto e interativo significam uma pequena revolução na forma de fazer política pública e regulação de política pública; cobrir todo o território, conectar todos os cidadãos, cumprir um programa de literacia digital, atribuir uma identidade digital aos cidadãos, criar regras para a proteção de dados pessoais, definir as
condições e os termos para a cogestão dos bens comuns colaborativos, assim como atribuir uma licença colaborativa para a sua utilização ulterior, eis algumas variáveis essenciais para a política regulatória do estado-plataforma nos próximos anos.
Nota Final
Ao longo dos anos, o modelo silo do estado-central criou territórios-zona e gavetas orçamentais para administrar áreas e atividades no modo clientelar e corporativo. Em cada silo, a equipa ministerial é a cúpula desse modelo e a sua legitimidade alimenta-se dessa provisão clientelar. Do mesmo modo, em cada área governativa forma-se um canal de acesso privilegiado e uma cadeia de influências com várias intermediações onde se acomodam os agentes facilitadores e as estruturas de concertação e negociação. Ninguém parece estar muito preocupado com as ineficiências internas que se geram nas zonas de interface entre setores e áreas de atividade, uma vez que as externalidades negativas assim geradas são geralmente cobertas e socializadas pelo contribuinte.
Como dissemos, a economia das plataformas promove uma cura de emagrecimento nas intermediações e só por essa razão já teria valido a pena promover a transformação digital das organizações privadas e públicas. Há, todavia, um longo caminho a percorrer e num país como Portugal, onde geralmente se confunde uma política pública com a publicação de um diploma legal, não é tarefa fácil montar pequenos núcleos inovadores no interior da administração pública em ligação com centros de investigação e outras startups e, a partir daí, gerar um movimento de reforma da nossa administração pública. O principal estrangulamento é o modelo silo completamente ultrapassado das nossas principais instituições, totalmente viciadas em candidaturas e ajudas públicas para preencher a sua missão corporativa. Entretanto, enquanto se aguarda por melhores dias, a alternativa mais conveniente estará sempre à espreita, chama-se modernização administrativa e negócio informático, necessários, é certo, mas uma mera resposta técnico-financeira que não se confunde com cultura política colaborativa e participativa do futuro estado-plataforma.