Antes de ser encerrada este ano, a plataforma ilícita de mensagens Coco estava implicada em assassinatos, abuso sexual de crianças e ataques homofóbicos. O fórum anónimo do caso de violação Pelicot
Corpo do artigo
As confissões de Dominique Pelicot - o francês que recrutou dezenas de homens online para violarem a sua mulher inconsciente - iluminaram a impunidade de vários criminosos em plataformas online, que aparentam levar vidas normais fora delas.
O julgamento horrorizou o mundo e mostrou a bravura da mulher, Gisèle, em revelar publicamente pormenores dos crimes de que foi alvo. À medida que eram ouvidas as alegações contra mais de 50 arguidos, acusados de participarem nas violações, tornou-se evidente um padrão.
Estes homens levavam vidas duplas: eram honestos em público e envolviam-se em atos abomináveis online e em privado. No tribunal em Avignon, vários dos arguidos detalharam como Pelicot os encontrou e coordenou os abusos através de um forúm de chat ilícito chamado Coco.
O caso demonstrou que a escala dos crimes de Pelicot, e a sua capacidade de os manter ocultos durante tantos anos, aparentemente, não teriam sido possíveis sem o desrespeito de Coco e dos seus administradores pelo conteúdo partilhado na plataforma. O site tornou-se um dos exemplos mais claros de como as plataformas podem causar danos extremos quando não são moderadas.
Desde a sua fundação, em 2003, a plataforma Coco esteve implicada em homicídios, pedofilia, ataques homofóbicos e agressões sexuais, sem se responsabilizar pelos crimes. No início deste ano, as autoridades europeias encerraram-na, por fim, e prenderam o fundador, juntamente com outros executivos. À data, tinha sido citada em mais de 23 mil denúncias de atividades criminosas, envolvendo mais de 480 vítimas, segundo dados franceses.
Um refúgio para malícias online
Fundado pelo engenheiro de software Isaac Steidl, quando tinha 20 e poucos anos, o Coco foi lançado como um site de chat gratuito com uma interface simples que permitia aos utilizadores comunicar anonimamente. Embora verificasse que tinham mais de 18 anos, podiam mudar rapidamente de idade assim que obtivessem acesso à plataforma e comunicar com um nome inventado.
"Parecia tão inocente. Era um design muito dos anos 90, com coqueiros e um rosto sorridente e dizia "este é um site para pessoas simpáticas", disse ao jornal britânico, "The Guardian", Sophie Antoine, responsável pela defesa jurídica da organização francesa anti-prostituição infantil ACPE. "Mas lá dentro era como uma selva", contrapôs, acrescentando que era muito acessível e explícito.
Após o registo, a página pública disponibilizava uma lista de fóruns de chat sobre diferentes assuntos. A natureza sexualizada do site significava que muitos destes fóruns eram dedicados a fetiches específicos ou continham conteúdo explícito. Também era possível entrar em chats privados e enviar mensagens diretamente para outros utilizadores.
Embora nunca tenha conquistado popularidade, o site tornou-se bem conhecido entre os defensores da segurança infantil e os grupos de defesa dos direitos LGBTQ+ que monitorizam páginas com potencial para causar danos online.
No caso de Pelicot, o marido usou um pseudónimo anónimo e solicitou aos homens num fórum chamado "à son insu", que significa "sem o seu conhecimento", que fossem à sua casa na pequena cidade de Mazan. Pelicot disse no fórum que ele e a mulher partilhavam um fetiche por homens que tinham relações sexuais com ela enquanto dormia, sem mencionar abertamente que a estava a drogar contra a sua vontade e que ela não tinha conhecimento ou consentimento do abuso.
Embora muitos dos homens afirmassem acreditar que estavam envolvidos numa encenação sexual consensual, os investigadores descobriram que, por diversas vezes, Pelicot também usou explicitamente as palavras "violação" e descreveu a potenciais agressores como drogava a mulher.
No caso improvável de um utilizador ser expulso do Coco, devido a queixas ou ameaças legais, o site cobraria uma pequena taxa de cerca de 10 euros para restabelecer contas banidas, averiguou a investigação.
Assassinatos, ataques e abuso de crianças
Durante anos, uma série de crimes de grande impacto que envolviam o Coco receberam ampla cobertura mediática em França e aumentaram os apelos entre os grupos de defesa dos direitos humanos para o encerramento da plataforma.
Um dos primeiros casos foi o assassinato, em 2018, de Michel Sollossi, de 55 anos, morto por um homem de 22 anos que tinha combinado encontrar-se com ele no Coco. Sollossi foi encontrado espancado até à morte na sua casa, nos subúrbios de Paris, e um julgamento concluiu que o homicídio foi um ataque homofóbico. O autor do crime foi condenado a 20 anos de prisão.
Seguiu-se uma onda de "ataques de emboscada" semelhantes a homens homossexuais que foram atraídos no Coco para se encontrarem com estranhos. Em 2022, um jovem de 24 anos de Marselha alegou que escapou por pouco a um ataque de três pessoas que tentaram atropelá-lo quando chegou a um encontro organizado no Coco. As autoridades detiveram quatro pessoas na cidade de Saint-Polois, no início deste ano, depois de terem sido acusadas de se fazerem passar por homens em busca de encontros no site e atraírem as vítimas para as conhecerem antes de as atacarem e roubarem violentamente.
Embora os ataques violentos contra homossexuais tenham proliferado na plataforma, o site foi também utilizado para o abuso sexual de crianças. Um homem da cidade de Brest, no noroeste de França, admitiu, em 2019, ter trocado vídeos de violação de crianças no mesmo fórum "à son insu" que usava Pelicot. Num dos casos de maior impacto, a ex-estrela pop francesa Richard Dewitte, de 77 anos, foi detida depois de ter solicitado sexualmente um polícia à paisana - que acreditava ser uma rapariga de 13 anos. Um tribunal condenou Dewitte a três anos de prisão no ano passado.
Num outro caso, dois adolescentes foram detidos, no início deste ano, e acusados da morte de um homem de 22 anos num subúrbio de Dunquerque. Os dois rapazes terão fingido ser uma rapariga a querer encontrar-se, antes de emboscarem o homem e o espancarem até à morte num estacionamento quando apareceu.
O fim do Coco
Os grupos de defesa dos direitos humanos e as autoridades enfrentaram vários obstáculos legais na investigação e na tomada de medidas legais contra o site. Durante anos, os regulamentos da União Europeia impediam o proprietário de um website de ser responsabilizado legalmente pelo seu conteúdo. O Coco também mudou o local onde estava hospedado, deixando de ser um site totalmente francês e passando a ter um domínio registado na ilha autónoma de Guernsey. Além disso, dispunha de várias camadas de segurança para fugir às autoridades e ocultar de onde operava.
Responsabilizar Steidl pelo site que criou enfrentou também outro obstáculo logístico – algures depois de ter fundado o site, mudou-se para a Bulgária, fora do alcance imediato das autoridades francesas, e renunciou à sua cidadania francesa. Mesmo quando o Coco foi publicamente implicado numa série de casos de violência e abuso sexual, o site manteve-se online e Steidl não foi encontrado.
O encerramento do Coco resultou de um grande esforço internacional, ao longo de 18 meses, e de uma alteração à lei francesa. Em dezembro de 2023, a autoridade nacional francesa de combate ao crime organizado, Junalco, lançou uma investigação sobre o Coco ao abrigo de uma lei recente que permitia responsabilizar os administradores por determinadas atividades nos seus sites. As infrações acarretam penas até 10 anos de prisão, bem como multas até 500 mil euros.
Juntamente com a Junalco, agências de países como a Lituânia, Bulgária, Hungria, Alemanha e Países Baixos coordenaram um esforço para derrubar o Coco em junho deste ano. As autoridades internacionais fecharam servidores sediados na Alemanha, apreenderam cerca de 5,6 milhões de euros e congelaram várias contas bancárias ligadas ao site. Na Bulgária, as autoridades locais detiveram e entrevistaram Steidl com procuradores franceses presentes. Três dos associados de Steidl, incluindo a sua mulher, foram também detidos para interrogatório em França e posteriormente libertados.