Jianwei Xun, suposto autor da teoria da "hipnocracia", é produto de inteligência artificial
Livro sobre novas formas de manipulação no mundo atual é assinado por autor que não existe. O ensaio, que na realidade é da co-autoria do italiano Andrea Colamedici, em conjunto com plataformas de inteligência artificial, visava altertar para os perigos da tecnologia na teoria e na prática.
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A cidade francesa de Cannes acolheu, no dia 14 de fevereiro, uma mesa redonda subordinada ao tema "Metamorfose da Democracia, a forma como a inteligência artificial está a perturbar a governação digital e a redefinir a nossa política". O debate, que originou um artigo publicado no jornal espanhol "El País", no dia 26 de março, versou sobre o tema da chamada “hipnocracia”, formas de manipulação do mundo atual refletidas no livro "Hipnocracia. Trump, Musk e a Nova Arquitetura da realidade", assinado pelo autor Jianwei Xun.
Acontece que este suposto filósofo de Hong Kong não existe. É, na realidade, um produto de inteligência artificial, revelou a revista italiana "L'Espresso". "Hipnocracia" é da autoria do ensaísta Andrea Colamedici, que assina como tradutor, mas que é, de facto, coautor do livro, em colaboração com duas plataformas de inteligência artificial. Sem informar o público disso mesmo, tal como exige a legislação europeia, Colamedici justifica a obra como uma “experiência filosófica e uma performance artística”.
O "El País" decidiu entretanto retirar o conteúdo do artigo publicado, que fazia referência ao conteúdo da obra atribuída ao alegado filósofo, cuja existência se provou ser falsa. O ensaio - que mostra os mecanismos que regulam a nossa era de “narrativas hipnóticas”, revelando como o poder não atua por meio da opressão, mas sim com as histórias que consumimos e partilhamos - foi citado por vários meios de comunicação social internacionais, bem como representantes de instituições académicas.
Revista italiana descobriu a verdade
Foi Sabina Minardi, chefe de redação do italiano "L'Espresso", quem descobriu que Xun não existe. Intrigada pela figura do novo autor, tentou entrar em contato com ele através de todas as vidas, acabando por descobrir que, apesar da biografia na Wikipédia e das inúmeras citações de estudos feitos no passado, o autointitulado filósofo de Hong Kong fora inventado por uma editora italiana, naquela que foi uma operação bem-sucedida com a cumplicidade da inteligência artificial.
Em declarações ao "El País", depois de a revista italiana divulgar a descoberta, Andrea Colamedici explicou que a intenção era criar uma "experiência filosófica e um espetáculo artístico que destacasse os riscos e perigos da utilização da inteligência artificial", construindo um livro que divulgasse ideias em que o próprio acredita e que produziu. "Não queria induzir o leitor em erro, o objetivo era académico, para evidenciar mecanismos perigosos da utilização da inteligência artificial pelas grandes tecnológicas através de uma utilização imprudente da mesma. Quis evidenciar não só os perigos, mas também mostrar a prática da tese que encarnava, pelo que se trata de um livro que, simultaneamente, explica uma teoria e a encarna", defendeu.
O regulamento europeu sobre inteligência artificial, acordado pelas instituições da UE a 8 de dezembro de 2023 e aprovado pelo Parlamento Europeu a 13 de março do ano passado, considera uma infração grave o incumprimento da rotulagem de texto, vídeo ou áudio gerados por inteligência artificial, algo que o livro de Colamedici, publicado pela sua editora, não inclui em nenhum momento nas versões italiana e inglesa.
Autor mostrar a teoria na prática
"Deixei uma série de pistas para o leitor dentro e fora do livro. Por exemplo, o primeiro capítulo conta a experiência de Berlim, que é exatamente a descrição do que é a 'hipnocracia'. O capítulo narra a experiência de um grupo de académicos de uma universidade que inventam um autor que escreve um livro falso que é adorado, comentado e discutido pelo meio cultural", argumentou o autor italiano. “Fi-lo porque a intenção era tornar tudo mais eficaz e não apenas dar uma teoria, mas produzir um livro que fosse teoria e prática, que fosse uma oportunidade para as pessoas viverem mais intensamente o que estavam a ler”, justifica o editor italiano.
O site de Jianwei Xun foi entretanto alterado para revelar a sua identidade: “Surgiu no final de 2024 como uma entidade filosófica distribuída, nascida da interação colaborativa entre a inteligência humana e os sistemas de inteligência artificial”. E admitiu que o autor foi “inicialmente apresentado ao mundo como um filósofo nascido em Hong Kong e a viver em Berlim”.