João Reis: "Temos uma elite cultural que enxovalha tudo o que é novo e diferente"
Numa das primeiras distopias climáticas da literatura portuguesa, "Cadernos da Água", João Reis descreve uma realidade cada vez menos distante da atual, marcada por secas extremas e pela guerra entre países devido às disputas em torno da água. "Vivemos na era do ego", aponta o autor.
Corpo do artigo
Ao quinto romance, João Reis (Vila Nova de Gaia) investe num registo diferente dos anteriores, ao narrar a várias vozes um mundo em estado pré-apocalíptico, cujas semelhanças com os dias presentes são, todavia, menos acentuadas do que poderíamos pensar à primeira vista.
Pouco identificado com "os floreados em voga na literatura portuguesa", denuncia o fechamento da elite cultural portuguesa, que define como "retrógrada e quase toda proveniente de um meio privilegiado".
O livro foi escrito em 2020, mas antecipa alguns cenários que, embora venham de trás, vivemos atualmente com maior intensidade, como a invasão da Ucrânia pela Rússia, o clima de tensão crescente entre os países ou a escassez de água. Como viveu a coincidência temporal entre a publicação do livro e a semelhança atual com alguns dos episódios ali narrados?
Embora alguns dos factos fossem previsíveis, não deixei de achar curioso que alguns deles ocorressem, em certa medida, quando do lançamento do livro, sobretudo porque acabaram por surgir em simultâneo. Se, por um lado, já havia comentado a coincidência de o livro ser editado em plena seca em Portugal, a situação adquiriu contornos um pouco mais bizarros quando da invasão da Ucrânia poucos dias antes do lançamento do livro. Não se tratam de acontecimentos felizes, mas comprovam que o meu trabalho enquanto autor não se assemelhou ao de uma mó a girar em seco.
Embora, como já foi escrito, nenhum dos cenários que o livro explora seja absolutamente novo, pareceu apanhar toda a gente de surpresa, políticos incluídos. Vivemos na era da distração?
Sim, podemos dizer que vivemos na era do ego. Creio que a generalidade das pessoas sempre viveu distraída - ou pouco interessada no mundo - ao longo da História, políticos incluídos. Basta pensarmos no que sucedeu previamente à Segunda Guerra Mundial, só para referir um dos exemplos mais óbvios, para percebermos que os políticos não são, em geral, sujeitos dotados de uma grande visão de futuro ou sequer de uma inteligência mediana. Penso que a maioria dos políticos tem como principal objetivo a garantia do seu bem-estar pessoal, não o da sociedade, pelo que lhe falta a necessária capacidade de reflexão a longo prazo. O mesmo se aplica à generalidade da população, que vive de modas e concentrada, de modo por vezes quase doentio, na exaltação do seu ego e daquilo que vê como grandes feitos individuais. Pensar em outrem, noutros povos, noutras espécies, no mundo não é algo inato a muita gente.
Para quem se assume como um pessimista nato, como é o seu caso, escrever uma distopia é quase uma inclinação natural?
Não necessariamente. Este romance é uma distopia porque a ideia de onde parti e o objetivo a que me propus a isso me obrigaram, mas diria que o estilo que utilizei mais amiúde - denso, elíptico, sarcástico, com pendor para o absurdo - me é mais natural e me permite transmitir o pessimismo filosófico que me é característico. O que não invalida a possibilidade de escrever, no futuro, outra distopia!
Com a progressiva deterioração do clima político, social e até económico, crê que os romances ditos distópicos tendem cada vez mais a ser considerados realistas?
É uma possibilidade, sim. Podemos afirmar que a realidade tende a aproximar-se das efabulações típicas das distopias. O que, em si, era também previsível, dado o desenvolvimento tecnológico que alcançámos e as consequentes alterações climáticas, sociais e mentais a que o ser humano tem estado sujeito. Por outro lado, poder-se-ia dizer que esta aproximação do real à distopia prova o valor da distopia enquanto objeto de reflexão e obra de arte social e política.
As conquistas civilizacionais sempre foram mais ténues do que gostávamos de acreditar?
Sim, sem dúvida. O progresso deve-se quase sempre a uma minoria que tenta inculcar um certo tipo de pensamento e de mudanças à sociedade. É curioso refletir sobre quem pertence a esta minoria; ao contrário do que se possa pensar, não é o assim designado «povo» que leva a alterações sociais. Esse esteve sempre sob o jugo das contenções físicas e económicas impostas por uma minoria que sobre ele exerce violência (física e económica, precisamente), e demasiado preso à luta pela sobrevivência e, por conseguinte, atolado em problemas que o impedem de pensar nestas eventuais conquistas civilizacionais. E, como é evidente, os mais poderosos, vulgo, os mais ricos, nunca tiveram nenhum interesse em mudar o que quer que fosse, daí estarem sempre aliados ao pensamento político conservador, às religiões, etc. Quem sempre propagou as ideias mais progressivas foi uma minoria que viveu ou vive acima do limiar da luta pela sobrevivência, mas que também não pertence ao clube restrito dos mais ricos. Não é por acaso que a classe média tem sido destruída: a classe média lia mais, inquiria mais, exigia mais. Se se tiver uma população pobre, que não lê nem estuda, e vive entre o polo da mera subsistência e o da luta pela riqueza material, sem que a esta riqueza material esteja sequer associado qualquer interesse por cultura ou política, temos caminho aberto para políticas retrógradas, para a expansão da extrema direita, e para a violência e o tradicional pensamento mesquinho dos políticos.
Como procurou incutir alguma luz no tom sombrio que domina o livro?
Como há uma grande diversidade de narradores, tentei que as diferentes visões de uma mesma realidade incutissem diferentes matizes à narrativa, evitando posições marcadamente maniqueístas. Sara, a protagonista, acaba por ser quiçá a personagem que transmite mais ideias positivas, ainda que misturadas com um certo desalento, pois a situação em que se encontra (e sobretudo o facto de ter uma filha consigo) obriga-a a manter uma certa esperança e até a habituar-se às péssimas condições da sua nova vida.
Essa visão pessimista que tem, radica mais no indivíduo ou na sociedade? Ou seja, concorda com Rousseau quando afirmava que o "Homem é naturalmente bom, mas a sociedade corrompe-o" ou o contrário?
Não é uma questão a que consiga dar uma resposta simples e clara, mas penso que radica tanto no indivíduo quanto na sociedade. Não creio que o homem seja naturalmente bom, isso foi uma patetice de Rousseau. Naturalmente, o homem nem é bom nem é mau, porque para se saber se é bom ou mau, precisamos de lhe aplicar conceitos éticos, artificiais, que ao longo da História foram transmitidos sobretudo sob a forma de religiões ou outras mitologias. A sociedade, no sentido de civilização, é na verdade a tentativa de conter os - digamos assim - maus instintos do indivíduo, que no fundo não são bons nem maus instintos, mas apenas o que são. O facto de termos de viver em comunidades de centenas, milhares, milhões de pessoas obriga-nos a sujeitar estas pessoas a um determinado código de valores, e nada mais. Não creio que a maioria das pessoas seja «má» no sentido ético que por norma atribuímos à palavra. No entanto, também não creio na extrema bondade do indivíduo, que acho capaz de cometer as maiores atrocidades se os seus atos permanecerem ocultos, e muito menos na da sociedade, que mastiga e cospe os indivíduos que a constituem sem qualquer problema. Todavia, a sociedade é necessária para que os indivíduos receiem um qualquer tipo de castigo e se coíbam de agir sem pensar nas consequências. Se a sociedade não aplicar leis, normas e proibições, não creio que seja possível fazer progredir a humanidade.
É quase um lugar-comum dizer-se que as situações-limite, como as guerras ou as pandemias, fazem vir ao de cima o melhor e o pior do ser humano. Acha que é o fundo (i)moral de cada um que determina esse comportamento?
Também, mas não só. Creio que todos são capazes de quase tudo, dependendo das circunstâncias. Mas muitas pessoas apresentam comportamentos mais dignos mesmo sob as piores circunstâncias, ao passo que outras depressa aproveitam situações violentas ou caóticas para cometer todo o género de atrocidades ou perversões. Portanto, sim, em grande medida estas situações ajudam a revelar o fundo de cada um.
Em que sentido a literatura pode ajudar de algum modo a inverter o défice de empatia que, no entender de muitos, os seres humanos manifestam cada vez mais?
A literatura é talvez a forma de arte que mais aprofunda a reflexão e o contacto com a perspetiva de outrem, e a empatia é, em suma, a capacidade de entender alguém com ideias e experiências diferentes, por vezes até opostas às nossas. O acesso ao texto, à psique de personagens ou à narração de situações que nos são alheias é o melhor processo para consciencializar quem lê.
Já disse anteriormente que procura que cada novo livro traga um desafio particular. Em "Quando servi Gil Vicente", por exemplo, terá sido previsivelmente a linguagem. E neste em particular?
Em "Cadernos da Água" tentei, em primeiro lugar, criar uma narrativa a várias vozes, o que desde logo difere de quase todos os livros que já publiquei (exceção feita a "Bedraggling Grandma with Russian Snow", apenas publicado em inglês, onde as narrativas autodiegética e heterodiegética se misturam). Tentei também criar uma protagonista feminina credível, o que é um desafio para um autor masculino, claro. De resto, retiro sempre prazer - juntamente com muito nervosismo e até algum mal-estar - da escrita, e criar uma narrativa especulativa, que une um presente que conhecemos com um futuro possível, foi um desafio que me agradou sobremaneira.
A aparente versatilidade dos seus livros é muitas vezes apontada. Pensa que terá algo que ver com o ofício de tradutor, que o obriga a contactar com registos naturalmente muito distintos?
O meu trabalho como tradutor leva-me, de facto, a traduzir livros de diferentes géneros literários, de diversos autores e de diversos países, o que poderá contribuir para a minha versatilidade enquanto autor. Mas creio que será apenas um de vários fatores possíveis. Existirão outros, como, por exemplo, a minha personalidade, o facto de querer experimentar registos variados, ou inclusive as diferentes leituras que fui fazendo desde a infância.
Qual a importância que a escrita assume na relação com o(s) que o(s) rodeia(m)?
Como a escrita é uma parte importante de mim, as pessoas que me são mais íntimas acabam por ouvir ou até participar amiúde nas minhas divagações acerca de literatura, nas leituras que faço, nos meus planos de escrita. As que não me são íntimas conhecem-me, na sua maioria, precisamente por escrever. E conquanto não encare os meus interlocutores como fontes de material literário, por vezes uso histórias, observações ou traços de personalidade de outras pessoas nos livros que escrevo.
Embora na sua formação enquanto leitor a literatura portuguesa não tenha tido um papel central, segundo creio, elegeu uma figura como Gil Vicente como 'protagonista de um dos seus livros. Por mais contacto que tenhamos com outras culturas e literaturas, as marcas identitárias nacionais são inapagáveis?
Sim, há traços culturais, sociais, históricos, geográficos e genéticos a que não podemos escapar. Por mais que não siga os ditames de um certo gosto literário nacional, serei sempre português, e a língua portuguesa a minha língua materna. Comungo de muitos dos traços de personalidade tipicamente portugueses, porque, afinal, fui criado em Portugal, e por portugueses, e aqui me formei. Não sendo a literatura nacional a que mais me atrai no seu todo, aprecio vários autores portugueses, sendo Gil Vicente um deles. No que concerne a "Quando servi Gil Vicente", escolhi-o porque representa a transição de uma época para outra, de uma certa consolidação da língua (repare-se que Gil Vicente escreveu também em castelhano), porque é uma figura histórica de que pouco se sabe com certeza, e, acima de tudo, porque servia os propósitos do meu romance - que, aliás, é um romance pícaro, de linguagem e estilo, e não um romance dito «histórico».
Há algum autor que represente de algum modo para si a figura de mestre ou, vá lá, referência máxima?
Há alguns, sim. Louis-Ferdinand Céline, Thomas Bernhard, Gert Hofmann, Samuel Beckett, Knut Hamsun, só para nomear os mais relevantes neste momento, porque os gostos e os modelos literários que sigo se alteram no decurso do tempo. Estes são nomes que me dizem muito como leitor e autor, o que não significa, todavia, que os pretenda copiar ou sequer que exerçam, todos eles, uma influência óbvia na minha escrita.
Com um meio literário português "um pouco corrupto", como já afirmou, vê-se a concentrar cada vez mais esforços num percurso internacional?
Sim, cada vez mais. Este ano será publicado o meu segundo original em inglês, por exemplo. Aos poucos, vão surgindo mais traduções de obras minhas. Não quero excluir Portugal nem os leitores portugueses, mas também me agrada e desafia escrever noutra língua que não português.
Ainda há alguns anos vários críticos literários apontavam o défice de realidade existente nos livros da nova geração de escritores portugueses, em contraste com a geração anterior, politicamente empenhada. Observando os livros publicados recentemente, acha que o cenário se transformou?
Não, não transformou nada. Só para pior, talvez. Não creio que a literatura tenha de se comprometer política ou socialmente, mas gosto que o faça (sem descurar a forma literária, e sem ter necessariamente de ser de uma seriedade carrancuda). Há agora muitos livros que seguem normas do politicamente correto, mas são apenas tentativas de seguir a onda e, no fundo, de tirar proveito do movimento. Mais uma faceta da era do ego. No entanto, em termos de empenho político ou social, não vejo nada de concreto, mas mais do mesmo. Posso estar errado, mas o meu "Cadernos da Água" é, tanto quanto sei, a primeira distopia climática portuguesa. Temos uma elite cultural fechada em si mesma, retrógrada, quase toda proveniente de um meio privilegiado, que ignora e até enxovalha tudo o que é novo e diferente, em especial os grandes temas que preocupam as novas gerações por todo o mundo, como as alterações climáticas, a globalização, a transição para um mundo de trabalho mais precário, a incapacidade de um jovem trabalhador se sustentar a si mesmo, etc. Continuam a publicar obras e mais obras sobre factos ocorridos há décadas, revisitando temas batidos a que nada acrescentam, e quando tentam abordar a atualidade, fazem-no com pinças e uma sobranceria que lhes é característica em tudo o que escrevem.
O seu processo de escrita é rápido, como já afirmou anteriormente. Será lícito pensar-se que o mais moroso é o processo que conduz até à escrita propriamente ditada?
Sim, o processo de maturação de ideias, de pesquisa e de planificação leva-me mais tempo do que a escrita em si. Quando inicio a escrita de um livro, sei como a narrativa acabará.
O que ficou, do ponto de vista literário e não só, dos anos em que viveu no Norte da Europa?
Não ficou muito. Talvez uma certa aversão a floreados em voga na literatura portuguesa. Gosto de literatura enxuta e com sentido de humor, algo que encontro mais facilmente na literatura do Norte da Europa, sem dúvida. Mas, ao contrário do que se pensa, a literatura escandinava nem é a minha preferida, e creio que a literatura escandinava atual é até bastante fraca se tomada como um todo. Gosto bastante de alguns autores, claro, e os escandinavos têm uma certa vantagem geográfica: um livro mediano soa sempre melhor se ambientado no meio de abetos e com neve. Os chaparros nas planuras alentejanas não são tão apelativos. Mas, em suma, confesso que prefiro a literatura do Centro e Leste da Europa, por exemplo.
Com a atenção média do leitor cada vez mais diminuta, que desafios adicionais se levantam aos criadores literários?
Há uma tendência geral para se encurtar a narrativa, por forma a tentar atrair o leitor contemporâneo. No meu caso, não é algo que me incomode, porque o estilo que uso se coaduna com livros mais curtos, exigindo que a obra não se alongue demasiado, e de resto prefiro romances curtos a calhamaços que poderiam ser reduzidos a metade em muitos dos casos. No entanto, é com inquietação que assisto a uma cada vez maior incapacidade para se ler, e sobretudo para se entender o que se leu. As pessoas passam demasiado tempo nas redes sociais, em partilhas de conteúdo desprovido de conteúdo, em beijos e abraços virtuais, e decerto sobrará pouco tempo para ler.
Como vê o futuro da leitura (e da literatura, já agora), num país onde 60% da população não lê um único livro por ano?
Com pouca esperança. Quase ninguém lê, temos índices de leitura de país de terceiro mundo, e não vejo como isto se possa mudar. Seria preciso refrescar por completo a política e a educação do país. Há também fatores históricos, religiosos e geográficos que explicam esta situação vergonhosa, o que só contribui para que não anteveja um futuro radiante para a literatura em Portugal.