Naquela manhã de primavera, cinzenta e fria, a rotina diária repetia-se: os preparativos caseiros; o cuidado da criança e a formalidade do infantário; o início de um dia normal de trabalho.
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Quando cheguei ao Departamento, tudo parecia igual, excepto a pouca afluência de funcionários no local de trabalho.
Estranhava-se a ausência dos colegas que afluíam de diversas zonas a norte e a sul do Tejo e não se sabia ao certo o motivo do atraso.
Faziam-se comentários sobre as notícias que se ouviam: há movimentação de tropas em Lisboa. Fala-se de um golpe militar. A ordem da direcção não tardou: o Departamento vai fechar, hoje não se trabalha.
Regressada a casa, procurei indagar que se passava. Liguei o rádio: as notícias começavam a surgir e a minha ansiedade aumentava. Tivera conhecimento dois dias antes da prisão de um familiar pela PIDE.
Levaram-no para Caxias, prisão para presos políticos contestatários do regime ditatorial que nos governava. Era preciso contactar a família e saber o que estava a acontecer.
Alguns telefonemas e as vozes estridentes de alegria incontida repetiam: é a Revolução! Vamos para a rua participar com os militares e acabar com a guerra colonial! Vamos libertar os presos políticos!
Pensando nessas palavras “mágicas”: revolução, participação, fim da guerra, liberdade e fixando o olhar no meu filho de dois anos que brincava, disse para comigo: - Hoje pode ser o início de uma nova era mais próspera para o meu País, onde as crianças poderão encontrar um futuro melhor. Mas, para isso, é necessário que os militares sejam vitoriosos e que todos os democratas defendam a revolução.
Foi então que me dei conta de que as palavras: revolução, paz, participação e liberdade significavam mais do que o sentimento afectivo com que os meus familiares as pronunciaram. Elas soaram então, para mim, como o apelo ao dever de agir em prol de um ideal de paz, de justiça e de desenvolvimento humano.
Trinta e seis anos depois da conquista da liberdade, muito mudou no País e no mundo e muito há, ainda, a mudar. Eu continuo a acreditar que a sociedade anunciada naquela manhã de esperança permanece em construção e que reclama, mais do que a bela evocação da data em sua homenagem, o comprometimento de cada um de nós no acto de continuar Abril.