Onde se fala de apocalipses eternamente adiados, laranjas que ardem como o sol e 'road movies' com laivos 'sci-fi'. Afinal, o fim do mundo, tal como o céu, também pode esperar.
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Há quem insista em ver o fim do mundo como um grandioso 'blockbuster' norte-americano, repleto de explosões e gritarias intermináveis. E se a espetacularidade por todos esperada der afinal lugar a uma sucessão de momentos entediantes, executados sem dúvida por um Deus burocrático que apenas não quer ser interrompido no seu sonho celestial? Foi o que João Cabral de Melo Neto efabulou no seu poema "Fim do mundo".
A toada melancólica do poeta que escrevia "como quem constrói uma casa" atravessa cada um dos versos, habitados por "homens misericordiosos a comer laranjas que ardem como o sol",
Mais do que o fim do mundo, preocupa-o - isso sim - "o sonho final".
O fim do mundo
No fim de um mundo melancólico
os homens leem jornais.
Homens indiferentes a comer laranjas
que ardem como o sol.
Me deram uma maçã para lembrar
a morte. Sei que cidades telegrafam
pedindo querosene. O véu que olhei voar
caiu no deserto.
O poema final ninguém escreverá
desse mundo particular de doze horas.
Em vez de juízo final a mim preocupa
o sonho final.
Há 30 redondos anos, Wim Wenders oferecia-nos, com o tom impassível de sempre, um dos seus filmes mais notáveis. Embrulhado numa banda sonora não menos do que memorável, "Até ao fim do mundo" não é apenas um improvável cruzamento entre um 'road movie' e um filme de ficção científica.
É uma demanda infindável em que os seus personagens tateiam desalmadamente em busca de um qualquer sentido para a existência. Num mundo ameaçado por uma catástrofe nuclear, um cientista que tenta encontrar uma cura para a cegueira da mulher cria um invento capaz de gerar imagens transmitidas diretamente para o cérebro.
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Por muito tentados que estejamos a associar o tremendismo à voragem dos dias de hoje, a tendência é, na realidade, tão antiga quanto o próprio país.
É o que o investigador Joaquim Fernandes nos demonstra em "Apocalipses", livro recentemente editado pela Contraponto em que nos mostra os vários fins do mundo da História de Portugal.
Os terrores celestes e os profecias (alegadamente) divinas sempre encontraram lastro para se propagarem sem freio entre o povo e não só, beneficiando do efeito paralisante do medo e de uma religiosidade extrema. Mas não só por esses motivos. Pouco depois de um desses apocalipses ter sido desmentido pela própria realidade, logo uma nova teoria similar aparecia, desafiando a credulidade coletiva...
Apesar de se ter cumprido há dias o primeiro aniversário da morte de Luis Sepúlveda (uma das primeiras vítimas da covid-19), não são precisos grandes pretextos ou efemérides para retomarmos o contacto com os seus livros.
Em muitas das suas histórias, como "O mundo do fim do mundo", subsiste a ideia de que os obscuros interesses monetários estão a colocar em causa os últimos redutos da vida selvagem.
Eticamente engajado, Sepúlveda urde uma narrativa simples na estrutura mas firme na defesa dos ideais de respeito pela natureza e pelos ecossistemas mais frágeis.
Lá por estarmos a caminho do cadafalso, isso não significa que coloquemos de lado a boa disposição. É essa a mensagem aproximada que os R.E.M. nos transmitem em "It's the end of the world", tema em que Michael Stipe nos lança furiosamente à cara um mundo em turbilhão, onde a lei da sobrevivência fala sempre mais alto:
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