"Aberto todos os dias", o novo livro de poesia de João Luís Barreto Guimarães, é uma celebração reflexiva do quotidiano.
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Durante meses a fio, no período inicial em que a covid-19 tomou de assalto a vida de todos nós, João Luís Barreto Guimarães foi incapaz de escrever um poema sequer.
Percebe-se o bloqueio: autor de uma poesia erigida sob o milagre contínuo da existência, ainda que atravessado por constantes dúvidas e inquietações, o recente Prémio Pessoa sentiu-se subitamente tolhido pela antítese de vida que a pandemia trouxe. No lugar da liberdade, houve o(s) confinamento(s); em vez da esperança, apenas a contagem sibilina de vítimas, como se se tratasse de uma mera soma contabilística.
Se a dita normalidade demorou quase dois anos a voltar a instalar-se, Barreto Guimarães não precisou, felizmente, de tanto tempo para voltar ao estado poético habitual.
O lento recomeço de uma sociedade avessa à pausa é o fio condutor de "Aberto todos os dias", uma breve mas fecunda jornada poética pela miríade de encantos do quotidiano, dos quais estivemos privados à força durante demasiado tempo.
É, assim, neste vagaroso regresso à vida que se detém o olhar do poeta, capaz de se deter em objetos ou paisagens esquecíveis na sua aparência. Mas, como escreve no belíssimo "O incêndio", "alguém tem de amar o banal". Mesmo que sejam "luas que nascem dos dedos quando se roem as unhas" ou "o cheiro a peixe frito que sobe desde a cozinha".
Afinal, depois do longo período de privações, difícil mesmo é cansarmo-nos do "mundo aberto lá fora", que se espraia com langor, indiferente aos nossos estados de alma. É na minúcia dos detalhes que reside a magnificência de muitos destes poemas, em que a apologia do comum não exclui - antes reforça - a convicção do milagre de existir.
Para que "nem um só dia (seja) desperdiçado", só necessitamos de "estar à disposição do mundo". Por toda a parte, "há uma mão-cheia de coisas à espera de acontecer", do "prazo quase a acabar" ao "vermelho do semáforo (que reteve um par de vidas) a instantes de ceder a sua vez à cor verde".
A celebração reflexiva do quotidiano operada neste conjunto de poemas não é linear ou sequer uniforme. Bastas vezes a denúncia se acerca destes escritos, seja para dar forma à discriminação para com os mais velhos - bem evidente no combate à pandemia - ou a invocar a mediocridade, através da recorrente figura do execrável Sr. Lopes.
"Aberto todos os dias"
João Luís Barreto Guimarães
Quetzal