"talvez... Monsanto", de Ricardo Pais, estreia esta quinta-feira no São João. Confronto de linguagens cénicas e musicais resultam num objeto novo e inclassificável.
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Diálogo, coabitação confluência. Eis algumas palavras que descrevem o andamento de "talvez...... Monsanto", último espetáculo de Ricardo Pais que junta, no palco do Teatro São João, um friso de intérpretes de variadas proveniências e discursos artísticos para gerar um objeto novo, inesperadamente novo, admite o encenador.
Ricardo Pais brinca com a sua experiência enquanto membro do júri no programa "Portugal tem talento", afirmando que "este é um espetáculo de intérpretes, o encenador cumpre o seu papel de jurado." É parcialmente verdade o que diz: há uma seleção apuradíssima dos elementos que integram a sua nova aventura cénica: a voz espantosa do fadista Miguel Xavier; as cordas gotejantes da guitarra portuguesa de Miguel Amaral; a erudição percussiva de Rui Silva; a versatilidade gestual e vocal de Luísa Cruz; a presença telúrica das Adufeiras de Monsanto (conjunto de música tradicional da Beira Baixa que trabalhara já com o encenador em "Raízes rurais. Paixões urbanas", de 1997) e a convocação desse poeta maior da língua portuguesa, Ruy Belo, cujas palavras definem a dramaturgia mais profunda do espetáculo: a travessia da vida até à morte.
Mas não é exato que o encenador cumpra apenas o seu "papel de jurado". Conversando com o JN, Ricardo Pais define melhor: "O meu papel é ser crítico em relação à quantidade de beleza que se pode produzir e à maneira como ela deve ser doseada de modo a criar uma forma única". Mais próximo do maestro, portanto. Mas um maestro peculiar, cuja batuta não obriga à execução perfeita de uma peça fixada, mas antes coordena esse confronto de intérpretes e de discursos, assistindo, com deslumbramento crítico, ao nascimento de um novo corpo cénico e musical.
"Um lugar de liberdade"
Ricardo Pais faz o contrário de um produtor musical que atira elementos etnográficos para a sua base eletrónica sofisticada, enriquecendo essa base, mas reduzindo à expressão de adornos os ingredientes utilizados. O que ele faz aproxima-se da melhor "world music", que é justamente a dissolução de diferentes épocas e geografias na procura de um som inaugural. E nesse processo de juntar talentos e fazê-los chocar, provocarem-se, experimentarem novas relações e possibilidades, Ricardo Pais escava ainda no que são os rudimentos da ideia de espetáculo - algo que precede a instituição teatro. Espetáculo foi, por exemplo, a experiência de improvisação dos autores de ditirambos que entraram em diálogo com o coro, lançando as sementes dessa nova forma espetacular do século V a.C. - a tragédia.
Claro que é preciso saber uma coisa ou outra para se ter um módico de consciência do que se está a fazer, como demonstra o encenador em entrevista a Pedro Santos Guerreiro: "O palco tem uma capacidade gigantesca de absorção. Precisa é de ser um palco adulto, longe dos temas do corpo, da cor da pele, do politicamente correto que por aí prolifera. O palco adulto é aquele onde se faz teatro nas suas várias formas cénicas, como elas historicamente sempre foram praticadas, incluindo a música. É isso que faz do palco um lugar de liberdade".
"talvez... Monsanto" liberta novos imaginários cénicos e apresenta música inédita. É também anunciado como o derradeiro espetáculo do encenador. E aqui torcemos o nariz, porque se já não é possível esperar novos filmes de Visconti, novas crónicas de Nelson Rodrigues ou novas fintas de Maradona, podemos amuar com a perspetiva de reforma de uma cabeça ainda tão cheia de espetáculo.