Na Travessa de Campos, no Porto abre-se um portal para uma outra dimensão o CAMPUS-Paulo Cunha e Silva, centro nevrálgico de residências artísticas do Teatro Municipal do Porto, alberga estes dias do Festival Dias da Dança (DDD), 18 formações. Se as há para público em geral (como ioga e linguagem gestual portuguesa), também as existem para profissionais e estudantes de artes performativas.
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As formações profissionais são como já tinha detalhado ao JN, Cristina Planas Leitão, codiretora, um dos grandes atrativos do DDD e que alimentam uma fatia do público nacional e internacional que participa no certame.
Brigel Gjoka, bailarino e coreógrafo albanês, coautor do espetáculo "Neighbours" lecionou uma formação sobre energia mecânica e distribuição do esforço na composição coreográfica.
Ainda não são dez da manhã e já os estúdios do CAMPUS estão ocupados com bailarinos que deixam estendidos os corpos sobre o linóleo, aquecendo a vontade e os diferentes grupos musculares, em movimentos de auto massagem como uma resposta ao apelo de auto-cuidado- imposto como temática da edição deste DDD.
Muitos dos formandos são caras familiares do público, bailarinos e coreógrafos que trabalham no Porto como Índio Queiroz, as irmãs Carminda e Maria Soares ou Bruno Senune.
Brigel Gjoka começa por propor um acordar do corpo de baixo para cima: primeiro os pés (os dele com um coup de pied, evidentemente treinado pela escola clássica) enrolados soltos, redondos. Para começar a "expandir a energia".
O nível de concentração na sala é acurado, a música, contrariamente é suave com o reconhecidíssimo "Quizás, quizás, quizás" a soar de fundo. A partir daqui começa um trabalho inverso à gravidade, como o sabem os bailarinos, o core (centro energético do corpo) em ação, ao qual se seguem as energias inversas que se aplicam na dança. Pura física: diagonais, força, mecânica e precisão, hemisférios a trabalharem em oposição.
Depois umas pernas capazes de desenhar espirais intermináveis e as mãos, a interpretação, a fluidez, a estética e a beleza dos movimentos. "O público não consegue compreender muitas vezes a complexidade do que estão a fazer com as pernas, mas consegue ver os vossos braços e a energia das vossas mãos e nisso vocês não podem falhar", explica aos formandos.
Outro dos truques de Gjoka é o uso do duplo tempo musical, sem perder a precisão. "Se vocês procuram a precisão com velocidade, têm de saber que quanto mais depressa se quiserem mover, mais têm de soltar o corpo", revela. Tudo se resume, mais uma vez, ao estudo detalhado da mecânica do movimento que domina na perfeição.
Os alunos insistem na força muscular e ele deslinda que "a beleza não está na contração está na libertação", verdade cabal que repete como intérprete.
As formações continuam até dia 30.
"Neighbours" um bife tártaro
Brigel Gjoka esteve também como intérprete em "Neighbours", espetáculo em cena no Teatro Constantino Nery, em Matosinhos, esta terça e quarta-feira. Nas récitas do Porto, um problema de saúde impediu que Rauf "RubberLegz" Yasit estivesse presente, passando o espetáculo a ser um solo dançado apenas por Brigel Gjoka.
A figura do espetáculo foi a música ao vivo, que será sempre a diferença entre flores de plástico e flores naturais. As que o virtuoso multi-instrumentista curdo do sudeste da Turquia, Ruşan Filiztek deu ao público, com um repertório oriundo da Mesopotâmia foi um deleite.
Às canções e melodias das regiões berço da civilização que forjaram tantas culturas e formas o músico acrescentou composições pessoais.
O espetáculo cru, em que há apenas um diálogo entre a música, ao vivo, tocada por Rusan Filiztek e Brigel Gjoka não tem grandes artefactos. Tal como os produtos de grande qualidade não necessita.
Com uma reciclagem de movimentos de danças celebratórias etnográficas, da Albânia e do Curdistão, misturados com o virtuosismo técnico da dança contemporânea, Brigel Gjoka demonstrou o que é ser um bailarino na verdadeira assunção da palavra. Um espetáculo tecnicamente irrepreensível e delirante.
Mesmo não dominando a significância das letras, e a totalidade dos códigos antropológicos usados pelo duo, há uma qualidade que devia ser intrínseca a todos os intérpretes: a capacidade de transmissão. Porque a linguagem das emoções é a cereja no topo do bolo da técnica.
Hoje o programa segue no Teatro do Campo Alegre, no Porto, com "Pai para jantar" de Gaya de Medeiros às 19.30 horas e Faye Driscoll com "Thank you for coming space", às 21.30 horas.