O mito de Sísifo é adaptado aos nossos dias pelas mãos do conhecido humorista brasileiro Gregório Duvivivier, acompanhado por Vinicius Calderoni,
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Todos somos Sísifo, o desgraçado a quem os deuses condenaram ao mais terrível dos castigos: ter que empurrar, até ao fim dos tempos, uma gigantesca rocha até ao alto da montanha, de onde voltava invariavelmente a cair devido ao seu próprio peso.
Esta é a tese defendida por Gregório Duvivier e Vinicius Calderoni num monólogo publicado em livro e levado recentemente à cena nos palcos portugueses e brasileiros.
Embora Duvivier seja sobretudo associado ao campo humorístico - é um dos protagonistas do conhecido colectivo Porta dos Fundos -, este não é o traço fundamental do texto.
Se isso se deveu a uma opção deliberada da dupla ou à manifesta incapacidade de ter graça, desconhecemos. A impressão dominante é a de que ambos partiram para a escrita com propósitos humorísticos, mas viram esse tom ser progressivamente substituído à medida que olhavam para a realidade à sua volta e aí encontraram mais motivos de preocupação do que de riso.
O que se torna por demais evidente ao longo do livro é, sim, o espetro da repetição.
Neste ensaio não-académico sobre o tema em 60 (breves) atos, somos remetidos para tantas outras situações ou repetições em que o absurdo parece desempenhar um papel relevante (embora desconheçamos, mais uma vez, se se tratou ou não de um recurso deliberado...)
Os dramas a que Duvivier e Calderoni aludem não serão da mesma ordem do que Sísifo enfrentou, mas nem por isso menos desafiantes. O principal está relacionado com a complexidade atual das regras de socialização.
Ao indivíduo (pós)contemporâneo não basta dominar as regras ancestrais que norteiam o relacionamento entre os seres. Ele deve ser também capaz (ou, mais importante, transmitir a imagem de que é capaz) de exibir à vontade em tudo quanto soe a inovação mesmo que essa novidade se torne obsoleta muito rapidamente.
Por entre críticas ao sistema político brasileiro - Gregório Duvivier é um opositor contundente do presidente Jair Bolsonaro -, subjaz acima de tudo a vacuidade ideológica dos nossos dias. Um vazio que é ilusoriamente preenchido com uma série de subterfúgios (do consumo desenfreado ao poder excessivo das redes sociais), mas que em nada nos afasta da travessia percorrida por Sísifo.