É irresistível recorrer a Tolstoi e ao início de "Anna Karénina" quando o assunto é o fim de um casamento, mesmo arriscando a heresia de trocar as palavras ao escritor russo. Não é a felicidade, antes a infelicidade, o que provavelmente torna cada uma das famílias igual a todas as outras.
Corpo do artigo
"Marriage story", que estreia esta sexta-feira no Netflix, aborda a dissolução de uma parceria feliz e arranca com as particularidades que marido e mulher apreciam um no outro. Charlie (Adam Driver) e Nicole (Scarlett Johansson), pais de um rapaz de oito anos, tentam agarrar-se ao que lhes resta para manter positiva uma ligação que está a chegar ao fim.
O filme de Noah Baumbach, realizador indie que tem feito carreira de sucesso a construir histórias sobre personagens "cool" em autoconsumo e a debater-se contra os muros que a realidade lhes impõe ("Lula e a Baleia", "Greenberg", "Frances Ha"), não é de todo a história de um casamento que o título diretamente sugere. Ou então é: o colapso da vida a dois é sempre o resultado de uma construção.
Parece, pois, impossível que esta produção Netflix, que está a ganhar força para os Oscars 2020 (o filme venceu os prémios de Melhor filme, Melhor argumento e Melhor ator nos Gotham Awards, o que é bom indicador), não remeta para "Kramer contra Kramer", o melancólico clássico de 1979 protagonizado por Meryl Streep e Dustin Hoffman, que se tornou numa das histórias do cinema definitivas sobre as arestas afiadas da separação.
Acontece que o realizador e também argumentista de "Marriage Story" tem novas linhas a acrescentar à narrativa deste género de fim, próprias do seu tipo de cinema. Aqui há simultaneamente comédia e profunda tristeza. Há amor, mesmo quando tudo é irrevogável, e há ódio, mesmo que resquícios de carinho ainda persistam. E há, em aproximação à vida real, a tensão crescente que acaba por explodir e lançar ondas de choque incontroláveis. A hipótese para um suave adeus é destruída, a vida do filho desarranjada, a família desintegrada.
Divórcios reais
A experiência traumática que Baumbach nos transmite de forma vívida deverá muito ao processo de divórcio que o realizador atravessou com a também atriz Jennifer Jason-Leigh. É difícil não tomar o filme como autobiográfico (Nicole e Charlie são atriz e encenador), embora Baumbach o tenha negado. "Este filme não é autobiográfico, é pessoal, e há uma real diferença entre as duas coisas", garantiu ao "The New York Times", explicando que há detalhes da sua vida que foram transpostos para o argumento, mas mais do que isso é "extrapolação".
Curiosa coincidência, que terá também acrescentado densidade a "Marriage Story" e à performance de Scarlett Johansson, é a de que também a atriz vivia recentemente as agruras de um divórcio (foi casada com o francês Romain Dauriac) quando foi abordada pelo realizador para protagonizar o filme. À "Vanity Fair", a estrela reconheceu que fez uso desse processo: "Tive algumas experiências semelhantes às da personagem. Acho que de alguma maneira percebo o lado agridoce de tudo isto".
A experiência de vida não fornece, e o filme mostra isso, respostas simples. A infelicidade é uma possibilidade demasiado comum.