Norma criada em 1990 continua a gerar contestação e polémica, com uma discussão complexa em aberto.
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Telmo Verdelho, professor catedrático de Linguística e Presidente do Instituto de Lexicologia e Lexicografia da Língua Portuguesa na Academia das Ciências de Lisboa, e Afonso Reis Cabral, escritor, editor e, desde fevereiro, presidente da Fundação Eça de Queiroz, têm em comum o terem feito uma reflexão profunda sobre o Acordo Ortográfico (AO).
Foram colocados pelo JN a falar dela, a pretexto da contestação civil que existe desde o seu anúncio. Telmo Verdelho é defensor do acordo que nasceu para aproximar as duas principais variedades do português escrito, a portuguesa e a brasileira. Afonso Reis Cabral é um dos seus opositores, e subscritor das iniciativas de luta cívica contra ele, incluindo a Acordo Zero (ler texto ao lado).
O primeiro entende que essa contestação é excessiva e resulta de um "empolamento" com raízes numa elite sociocultural. Já o segundo defende a sua abolição, no pressuposto de que "a língua é uma entidade viva e não é dominável dessa maneira".
De certa forma, curiosamente, ambos os pensadores sobre o AO estão de acordo em algo essencial - a língua é dinâmica, construída pelos seus falantes no seu tempo histórico e não deve ser domada por imposição.
Sem leis até ao século xx
"Até 1911, não havia nenhuma lei ortográfica, a língua portuguesa esteve muitos séculos sem regras de escrita, as pessoas escreviam sempre motivadas por serem entendidas", refere o catedrático da Universidade de Aveiro, para quem a língua se define por ser "um encontro de vontades".
Por essa razão, sublinha, a criação de uma norma ortográfica tem como objetivo a simplificação, a economia da língua e a diminuição do potencial de erro ortográfico. Telmo Verdelho entende que os opositores do AO "confundem ortografia com o que é a língua" e que a defesa da ortografia anterior pretende a preservação do hábito de escrita adquirido, na forma de um poder.
"A ortografia é uma questão pequena, insensível para a maior parte das pessoas. Estivemos séculos sem nenhuma lei e os portugueses revelaram uma grande capacidade de encontro dentro da comunidade, escreveram-se grandes obras", esclarece o linguista, defendendo que o AO se trata de "um reajustamento muito ligeiro".
Para o escritor - distinguido com os prémios Leya e José Saramago (e trineto do autor de "Os Maias") - "o acordo é um desacordo". "As duas variantes [portuguesa e brasileira] representam a diversidade da língua, são muito fortes e não são conciliáveis, porque a cultura é diferente, e isso é bom, é a prova da pujança da língua", salienta.
Prevendo que, considerando o maior número de falantes, a variante brasileira se torne dominante ("não tenho um sentimento conservador"), o autor refere que "o AO é uma má solução para um problema que não existia". Afonso Reis Cabral apela, porém, a um debate "com serenidade e objetividade" e "sem fanatismos de parte a parte".
Uma petição chegou ao Parlamento
O mais recente instrumento de luta cívica contra o Acordo Ortográfico é a iniciativa Acordo Zero, lançada em janeiro. Subscrita por quase 200 pessoas - entre elas escritores, políticos, académicos, músicos, professores, tradutores -, conta com apoiantes entre figuras conhecidas da vida pública e pede a abolição imediata daquela norma.
A iniciativa assume o propósito de defender "a preservação da diversidade da Língua Portuguesa em cada um dos países que a fala e escreve", apontando ao AO a falta de estudos sobre "os reais impactos de uma nova ortografia". Reclama "respeito pela etimologia e coerência morfológica", pela "evolução natural da escrita" e por "ortografia e fonética livres de palavras sem qualquer identidade (inventadas) e de erráticas pronunciações".
AR já chumbou
Atualmente, na página de Internet do Parlamento português, encontra-se uma única proposta de referendo do AO, com 1583 assinaturas e vários nomes comuns ao Acordo Zero.
No site Petição Pública encontram-se várias petições, entre elas aquela que, com mais de 20 mil assinaturas, foi votada na Assembleia da República, em fevereiro de 2018, juntamente com um projeto de resolução do PCP pedindo o regresso à ortografia anterior - e que resultou em chumbo.
Está ainda aberta a petição "Exigimos decidir, Exigimos Referendar o Acordo Ortográfico!", que conta atualmente com 7236 assinaturas. Em junho do ano passado, uma iniciativa legislativa de cidadãos pedindo a revogação do AO ficou pelo caminho, depois de passar pela burocracia parlamentar que, na prática, a arquivou sem ser debatida.