Certame Red Sea International Film Festival não deixou dúvidas sobre o que já se fez e o que há ainda a fazer.
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Sem branquear de todo os graves problemas políticos que se conhecem, as desigualdades sociais que se teve oportunidade de testemunhar e o muito que há ainda a fazer no que diz respeito à efetiva igualdade de direitos das mulheres, o Red Sea International Film Festival, que termina esta quarta-feira em Jidá, a segunda maior cidade do país, deixou uma imagem muito diferente nos que a visitaram na última semana, face àquela que é normalmente dada da Arábia Saudita.
Jidá é uma cidade grandiosa, onde a ausência de um serviço de transportes públicos origina um movimento incessante de viaturas, dia e noite. Trata-se de uma urbe que compete bem com Nova Iorque como "a cidade que nunca dorme", já que é possível ir comprar pão a um supermercado às duas horas da manhã, ou entrar a essa hora num café ou num restaurante.
Os centros comerciais têm as mesmas marcas que no ocidente e a cadeia Vox, que oferece já algumas centenas de salas num país que há três anos não tinha cinemas, situação que se prolongava desde a década de 1980, tem o mesmo perfil dos nossos multiplexes. Parceiro exclusivo do festival, foi muito frequente ver alguns filmes da programação ao lado de sauditas, sobretudo jovens, de todos os sexos, com grandes sacos de pipocas.
O programa social do festival foi também muito preenchido, com receções todas as noites, e se o álcool só esteve presente no interior das embaixadas, a que há pouco tempo era considerada a "música do diabo" pôde ser ouvida várias vezes até altas horas da noite, sem que tal parecesse ser já surpreendente para os que ocupavam as pistas de dança, ao som de grandes êxitos pop-rock.
Quem pensava que o festival iria criar uma espécie de bolha artificial para estrangeiro ver deparou-se, pelo contrário, com a possibilidade de se deslocar com total liberdade, dia e noite, por caminhos não necessariamente associados ao festival de cinema. Além disso, e ao contrário do que se passa em outros países do mundo árabe, nomeadamente no Magrebe, as câmaras de vídeo dos telemóveis não assustam e quase ninguém se desvia para não ser filmado. E é também frequente ver grupos de mulheres, sobretudo jovens, sozinhas e à noite, sem qualquer embaraço ou sinal de se encontrarem em perigo.
Dito isto, e além das já referidas questões políticas e sociais, a censura continua a existir, como referimos há dias a propósito da proibição da estreia da nova versão de "West Side story". E o primeiro filme saudita a abordar a questão da homossexualidade - interdita no islão - foi retirado da programação oficial; no entanto, rapidamente circulou que iria ser projetado, e logo na sala que sucede à passadeira vermelha.
Enfim, as "ondas de mudança" estão a chegar, algo a que o festival de cinema deu um forte empurrão, e apesar de alguns problemas de organização naturais numa primeira edição, tudo se passou dentro da normalidade, fruto também do trabalho das centenas de jovens voluntários de ambos os sexos que trabalharam no festival. Por exemplo, em cada um dos hotéis onde jornalistas, produtores e realizadores estavam instalados, havia na receção um espaço do festival, aberto 24 horas por dia, para resolver qualquer situação que se verificasse, nomeadamente ao nível dos transportes.
Prémios para todos os gostos
Apesar do festival ainda decorrer até esta quarta-feira, com mais projeções, a cerimónia de entrega de prémios decorreu segunda-feira 13 ao fim da tarde. A competição principal teve como presidente do júri Giuseppe Tornatore, que também apresentou em Jidá o seu monumental documentário "Ennio", sobre a obra do grande Ennio Morricone. Em conversa com o JN, para ler em breve, referiu-se assim à presença significativa de Dulce Pontes no filme: "Eu adoro a Dulce Pontes e o Ennio também a adorava".
Para o registo, o vencedor do prémio de Melhor Filme na Competição Red Sea foi "Brighton 4th", do georgiano Levan Koguashvili. O filme tem como protagonista o antigo campeão olímpico de luta livre Levan Tediashvili, que interpreta uma personagem semelhante, que tem de se deslocar a Nova Iorque para resolver uma situação criada pelo vício do jogo do filho.
Com dois prémios alcançados, o de Contribuição Cinemática e o Prémio do Júri, o iraniano "Hit the road", do jovem Panah Panahi, foi um dos grandes triunfadores da noite. Visto já na Quinzena dos Realizadores de Cannes, e vencedor do prémio de Melhor Filme no Festival de Londres, é uma clássica obra "on the road", acompanhando uma família durante um percurso de automóvel, descobrindo-se que afinal também não estavam sós.
O prémio de realização foi para o iraquiano "Europa", de Haidar Rachid, sobre a longa viagem a pé de um jovem que quer absolutamente deixar o país, a caminho do continente europeu. O seu protagonista, Adam Ali, foi considerado Melhor Ator, enquanto o prémio de interpretação feminina foi para Arawinda Kirana, do indonésio "Yuni", onde interpreta uma jovem que tem de evitar o casamento arranjado para manter uma bolsa e continuar os estudos.
O magnífico "Neighbours", do curdo-suiço Mano Khalil, sobre um conjunto de famílias curdas, muçulmanas e judias que viviam em paz na fronteira com a Síria antes da eclosão de trágicos eventos, venceu o prémio de Melhor Argumento, num palmarés que incluiu ainda uma Menção Especial para o jordano "Farha", de Darin J. Sallam, cujo título se refere ao nome da personagem central, uma jovem que na Palestina de 1948 tenta convencer o pai a mandá-la para a escola em vez de a casar.
O sempre aguardado Prémio do Público foi para "You resemble me", de Dina Amer, uma coprodução entre o Egito e França. Tendo como produtores executivos Spike Lee e Spike Jonze, o filme inspira-se na pesquisa feita pela realizadora sobre a primeira mulher identificada como bombista na Europa, na sequência dos ataques em Paris de 2015. Na secção de curtas-metragens, o vencedor foi "Tala'vision", do jordano Murad Abu Eisheh. Tala é um garoto de oito anos que não sai de casa devido à violência à sua volta, mantendo ligação com o mundo através da televisão - até o regime a banir.
Além de vários prémios atribuídos a produções de realidade virtual, por um júri presidido por Laurie Anderson, que também deu uma masterclass, o esperado prémio de Melhor Filme Saudita foi para "Rupture", de Hamzah K. Jamjoon, sobre o percurso de uma mulher grávida, que tem de distinguir entre a realidade e o sonho, ao mesmo tempo que um assassino a persegue, a si e à sua família.
Há muitas histórias para contar, nesta região, e o cinema começa a demonstrar uma enorme vitalidade. O investimento é enorme e os resultados começam a estar à vista.