"A maior parte destas canções resulta de um fluxo de consciência e foram escritas num estado de transe. As letras são a coisa autêntica, não são metáforas. É como se elas se conhecessem a si próprias e soubessem que eu as consigo cantar. De algum modo, escrevem-se sozinhas e contam comigo no fim para lhes dar ritmo e voz".
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As frases podiam ser de António Lobo Antunes, que em várias conversas falou da "mão" que "começa a andar sozinha". Mas pertencem a outro mestre, e por isso são igualmente credíveis. Foram ditas ao "The New York Times", na primeira grande entrevista de Bob Dylan desde 2017, e remetem para "Rough and rowdy ways", que é hoje lançado mundialmente.
O 39.o álbum de Robert Allen Zimmerman (n. 1941) sucede a "Tempest", de 2012 (pelo meio o cantor lançou três álbuns de versões do cancioneiro americano), e traz uma voz envelhecida em cascos de carvalho que continua debitar os grandes temas: anseios amorosos, a passagem do tempo, as ilusões do poder ou a história da América.
Foi mesmo com o épico "Murder most foul", divulgado a 27 de março no canal de YouTube do cantor, que começou a desenhar-se o novo álbum. O tema, de quase 17 minutos, o mais longo da carreira de Dylan, remete para o assassinato de John F. Kennedy, em 1963, e convoca referências a cerca de 70 canções. É um monumento que ficará para a história ao lado de outros colossos do passado, como "Ballad of a thin man", "Like a rolling stone", "Mr. tambourine man" ou"It"s alright, ma (I"m only bleeding)".
Limiar da destruição
Lançado em pleno pico da pandemia, "Murder most foul" serviu de pretexto ao historiador Douglas Brinkley, que conduziu a entrevista do "The New York Times", para extrair algum pensamento do cantor sobre a crise da covid-19. Não foi fácil, Dylan esquivava-se. Só à quinta abordagem, quando a pergunta foi direta - "Pensa nesta pandemia em termos bíblicos, como a praga que alastra pela terra?" - é que o bardo, que passou o confinamento na sua casa em Malibu, na Califórnia, acedeu a partilhar algumas palavras (inquietantes) sobre o assunto: "Acho que é a antecipação de algo mais que está por vir. É certamente uma invasão, altamente disseminada, mas se é bíblica, uma espécie de sinal para nos arrependermos das nossas más ações? Isso implicaria que o Mundo estivesse na calha para uma punição divina. A arrogância extrema poderá sofrer penalizações desastrosas. Talvez estejamos mesmo no limiar da destruição. Podemos pensar sobre o vírus de formas muito diversas, mas vamos ter de o deixar fazer o seu caminho".
Doente com Floyd
Também o episódio da morte de George Floyd, ocorrido no estado americano em que Dylan nasceu, o Minnesota, foi comentado pelo cantor, em clave depressiva: "Fiquei infinitamente doente ao ver o George torturado daquela forma. Foi para lá do horrível".
Recorde-se que Dylan, nos anos 1960/1970, em plena época do "movimento dos direitos civis" nos EUA, escreveu várias canções que denunciavam situações de racismo e violência policial, como "George Jackson", "Only a pawn in their game" ou o célebre "Hurricane", de 1975, sobre a prisão indevida do pugilista Rubin "Hurricane" Carter.
Douglas Brinkley especulou sobre a possibilidade de algum dia Bob Dylan vir a honrar George Floyd com uma canção, um pouco como David Bowie, que no seu tema tributo "Song for Bob Dylan" garantia que qualquer par de versos do bardo seria o suficiente para consertar todos os males do Mundo. Pois ele ainda cá anda, e a fazer grandes discos.