Há algo especial a acontecer em França desde há uns dois ou três anos: uma nova geração de músicos prefere cantar na língua materna contrariando uma tendência que já dominava há muito e que levava, tal como cá, uma maioria a preferir cantar em inglês.
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É certo que sempre houve gente que a cantar em francês mas nos últimos 20 anos, mais coisa menos coisa, a língua inglesa contaminou uma quantidade bastante significativa da pop do hexágono. "Sinto que a nossa geração vive este regresso à língua francesa como uma exigência de verdade ou honestidade. Não é uma questão de identidade nacional mas antes um desejo de autenticidade", explica ao JN Agnès Gayraud.
A compositora e cantora da banda La Féline assinala que "a violência do atual contexto político atual reforça este desejo". Cantar na língua de Molière, refere, "obriga-nos a dizer e a assumir coisas que permaneceriam despercebidas se estivessem em inglês adaptado". E isso acaba por colocar novos desafios aos criadores. "A atual pop francesa torna-se esteticamente mais entusiasmante: enfrentar o desafio da nossa língua faz de nós melhores". "São tempos muito estimulantes", remata Agnès.
O melhor de tudo isto é que subitamente desabrocha um viveiro de gente nova e cheia de talento que merece ser descoberta. Um cabal exemplo é Baptiste W. Hamon, cantor extraordinário que se prepara para lançar o seu primeiro álbum no final de fevereiro.
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Ele também concorda que a comunidade artística está a reapropriar-se da língua francesa para as suas criações. Os músicos, garante, "não têm medo de procurar soluções poéticas como se de repente tivesse desaparecido o receio do julgamento dos outros sobre a utilização da nossa língua", diz ao JN.
Outro é Martin Rahin, estupendo poeta e cantor influenciado por Boris Vian, Barbara ou Jacques Brel. Lembra que isto de cantar em francês não é novo, claro, "porque sempre fez parte do nosso património" mas assinala que "há cada vez mais grupos que cantam em francês com textos interessantes". Sublinha ainda que é evidente "e muito agradável" o facto de o público dar mostras de "regressar a este tipo de música que acaricia tanto a alma como a razão".
A tendência é ainda confirmada por outros artistas contactados pelo JN. Jean Felzine, voz dos incríveis Mustang, garante que atualmente "há mais coisas interessantes em francês que não se ficam pela chanson francesa clássica ou pelo rap mas que se manifestam no punk, na synth pop e na folk". Sente que um pouco por todo o país os músicos "estão descomplexados com a língua".
Benjamin Caschera, do La Souterraine, um coletivo de músicos independentes, nota que os artistas "estão a livrar-se do peso dos hábitos anglo-saxónicos e das canções em inglês". "As pessoas parecem voltar à essência, às origens", declara, convicto de que o inglês na pop francesa "é uma moda que está a passar". "Há um certo renascimento e um novo olhar sobre a escrita de canções em francês", corrobora o músico Alexandre Delano, mentor da The Delano Orchestra e que agora grava em nome próprio.
"A nossa geração foi atingida"
Esta é uma geração fortemente marcada pela tragédia de 13 de novembro. O massacre do Bataclan, sala que lhes é bem familiar, é um trauma dificilmente ultrapassável. Martin Rahin assume ter "dificuldades em encontrar as palavras perante as vidas destroçadas dos mortos, dos feridos, das famílias e dos amigos". "No entanto", continua, "quando li os testemunhos de todos esses heróis eu vi coragem, dignidade e generosidade, e isso também me dá esperança".
O artista, que além de ser um grande cantor, é também muito capaz na escolha das palavras, dá-nos uma opinião que merece ser citada na íntegra: "O que é duro é que muitos de nós acreditamos que a liberdade é uma garantia eterna ou um presente. Mas para desfrutarmos desta liberdade, os nossos antepassados lutaram e morreram, pagámos com o sangue dos nossos resistentes e aliados. Uma das funções da música é também lembrar isso às consciências, e lembro-me da "Deserteur" do Boris Vian ou do "Chant des Partisans". Que estas duas músicas nos ajudem a decidir quando lutar e quando recusar a lutar".
Agnès Gayraud fala de "sentimentos necessariamente muito confusos depois do medo, da raiva, mas também de mal-entendidos". "No plano político há tantas questões, é de uma complexidade quase desesperante e o cidadão comum ainda não sabe como responder honestamente a tudo isso", aponta. A cantora confessa não acreditar muito "nos impulsos que nos levam a ir para a guerra" mas ao mesmo tempo realça que "pode ser ingénuo fazer de conta que podemos manter a paz, mesmo acreditando que a paz ainda existe". "Nós devemos lutar pela paz para acabar com a humilhação, o sentimento de humilhação de ambos os lados", sugere, referindo que a música pop é, também "uma possibilidade de reconciliação de indivíduos de diferentes origens". "Não é um programa político mas à minha escala é o que eu sei fazer e tenho vontade de partilhar", finaliza.
"Foi a nossa geração que foi atingida", considera Alexandre Delano. O músico de Clermont-Ferrand sente que as pessoas à sua volta "estão a tentar esquecer porque se calhar é a única forma de retomar o caminho, de sair, de voltar aos concertos". Mas reforça que "está toda a gente bastante ferida e abalada com o ataque".
"Olha bem para as caras das vítimas: parecem-se contigo, comigo, com os nossos irmãos, amigos ou pessoas com as quais nos cruzamos todos os dias em locais de festa e de cultura e com os quais brindamos à vida", comenta Baptiste W. Hamon. "Tenho um amigo que sobreviveu ao ataque no Bataclan, não há palavras para descrever o inferno que ele viveu", desabafa. E tenta erguer a cabeça: "Aquece-me o coração ler as mensagens de apoio que chegam do mundo inteiro".