Chega hoje aos cinemas “O Império”, o último filme de Bruno Dumont.
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É a uma pequena e pacata localidade costeira que chegam duas naves extraterrestres, com uma espécie de cavaleiros medievais representando o Bem e o Mal e que ali se digladiam. Não parece mas é um filme francês e leva a assinatura de Bruno Dumont que, depois de filmes como “A Vida de Jesus” ou “Fora, Satanás”, se tem dedicado ultimamente mais à comédia, como aqui, em forma de sátira ao género de ficção científica. O filme venceu o Prémio do Júri em Berlim, onde encontrámos o realizador.
Entre o seu filme anterior passaram-se três anos, o que não é muito comum na sua filmografia.
É verdade, mas houve o Covid. Na realidade, devíamos ter filmado mais cedo e tivemos de adiar um ano. Mas também tivemos problemas de dinheiro, o filme foi difícil de financiar.
Qual é a sua relação, enquanto espetador e autor, com o cinema de ficção científica?
Tem coisas de que gosto muito. É espetacular e inventivo. O cinema naturalista europeu é profundo, mas por vezes difícil de compreender. O que gosto no cinema americano é que é fácil de compreender. É por vezes parvo, mas divertido. E muitas vezes superficial, ao contrário do europeu. Quis reunir os dois, não tenho nenhum desprezo pelo género. Por vezes fico impressionado com as aventuras espaciais.
Qual é o seu filme preferido do género?
O meu preferido é o “2001: Odisseia no Espaço”, do Kubrick, porque é profundo, ao mesmo tempo espetacular e um mistério. Para mim, é um modelo. Em todos os outros filmes ficamos um pouco desiludidos, porque no fim se esvaziam. Como os filmes da Marvel. São um pouco estúpidos, mas espetaculares. Fico impressionado pelo espetáculo e desiludido pelo fundo.
No filme há uma imagética muito forte ligada ao Cristianismo.
Quis mostrar algumas joias da arquitetura humana, que encontramos sobretudo na religião. As histórias do Cristianismo não me interessam muito. Mas a Capela Santa é muito bonita. Não é preciso acreditar em Deus para apreciar a sua beleza. É um local sagrado e colocá-la no alto de uma nave espacial é qualquer coisa. É um engenho de exploração do mundo espiritual. É uma bela nave, mas utilizei-a de uma forma profana.
Como é que concebeu as naves espaciais, visualmente?
As naves espaciais são normalmente tão estereotipadas, que quis renová-las. Mesmo as pessoas da equipa dos efeitos especiais tiveram dificuldades em criar as naves. Tive de contratar um arquiteto, para fazer uma maqueta, que depois demos à equipa dos efeitos especiais, que estavam muito dentro do que é tradicional e americano e não conseguiam sair dali e fazer-me outras propostas.
Essas naves impressionantes aterram numa pequena vila de pescadores…
Era essa precisamente a ideia do filme, ter esses grandes modelos, ideais, absolutos, e fazê-los aterrar num local absolutamente comum. Criar um contraste entre os grandes ideais do Bem e as pessoas completamente vulgares, de uma pequena vila perdida do norte da França.
Qual é a ideia central por detrás desse contraste?
O único império que existe é a Humanidade. Os outros são invenções, são fábulas, que representam os nossos conflitos interiores. O que o filme mostra são as batalhas internas entre o Bem e o Mal que se passam todos os dias, quando nos perguntamos o que devemos e o que não devemos fazer.
O filme é então uma reflexão sobre o que nós somos, mais do que sobre aqueles seres de outro mundo.
O Homem, de certa forma, também é um demónio, o Mal está dentro dele. O que quis contar, de facto, foi a origem do mundo. Porque razão a Humanidade é assim. Porque razão um tipo normal decide um dia estrangular a sua mulher. Tudo é possível. Há uma possibilidade inacreditável de entrar na violência. Temos de estar conscientes disso.
No cinema, o que prefere, a representação do Bem ou do Mal?
Eu prefiro o Mal. A função do teatro, da literatura, do cinema, é purgar o Mal. É o que se chama catarse. Os heróis mais importantes da história da literatura, de Sófocles e de Eurípides, matam crianças. Precisamos de sangue, violência, incesto. Temos de os representar. Não para os venerar, mas para nos libertarmos deles. É por isso que as pessoas hoje matam na rua, porque o cinema já não o faz.
O cinema tem-se tornado mais assético?
De tanto querer produzir entretenimento, o cinema deu cabo da sua função. É isso que é perigoso. A guerra, é preciso fazê-la no cinema, não na vida. Quando vejo filmes violentos, não fico com vontade de matar. Pelo contrário, fico aliviado, fico mais simpático, quando saio do cinema.
Nos seus últimos filmes descobrimos uma pessoa com um sentido de humor, que estava escondido nos seus primeiros filmes.
Decidi parar com esse tipo de filmes, já tinha abordado todas as questões que queria. Estava no mais fundo do trágico, não precisava de voltar a fazê-lo. Foi por isso que decidi partir para o cómico e o tragicómico. O que me interessou foi precisamente aventurar-me em algo de diferente. No meu próximo filme também vou explorar coisas diferentes. Preciso de aventuras, de fazer coisas novas. Não gosto de repetir o que já fiz.
Em vários dos seus filmes, como aqui, parodia bastante as forças da ordem…
Há uma dimensão surrealista, burlesca. Nós podemos rir de tudo. Há uma ironia. Há o apocalipse, mas dá para rir. Sou um tipo sobretudo otimista. Tenho o sentido do trágico, mas acredito no burlesco.
Essa ideia de Apocalipse repete-se na sua obra…
Hoje em dia toda a gente está obcecada com o apocalipse, com a guerra nuclear, com o fim do mundo. Essa ideia está nas nossas cabeças. Nós somos guerreiros, está inscrito no nosso imaginário. Somos assombrados pela morte, pela morte da civilização. Temos consciência de que a civilização é frágil, que nós somos frágeis. Pensámos que eramos eternos, que não havia mais guerras. Que tínhamos ido ao fundo com o nazismo, com os campos de morte. Mas não. Recomeça tudo outra vez.