Um dos nomes maiores da dança contemporânea regressa ao Porto com "Transverse orientation", uma viagem ao subconsciente. Esta sexta-feira e sábado no Rivoli.
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Há um antes e um depois de se assistir a uma criação de Dimitris Papaioannou - nome que traz colado à pele duas etiquetas: o mais jovem encenador da cerimónia dos Jogos Olímpicos de 2004 em Atenas e o primeiro artista a criar uma obra completa para a companhia Tanztheater Wuppertal, erigida em 1973 por Pina Bausch -, mesmo se não se sabe exatamente para onde vai ou, menos ainda, para onde quer ir.
O criador grego desenha uma espécie de "mapa do sentido da vida", mas cria também o "labirinto mental, a ilusão ótica", truques como armadilhas, corredores entre o paraíso e o inferno, como se nos servisse um shot cósmico para nos pôr a sonhar, inconsciência que torna difícil encontrar a porta de saída para o real. Metade da perceção de cada uma das suas peças, surrealistas, abstratas, a roçar o absurdo, cabe ao público. Ninguém tem vida fácil, as imagens sucedem-se num turbilhão vertiginoso, entre o belo e o grotesco, e é preciso correr para não ficarmos pelo caminho.
Em "Transverse Orientation", o mais recente e aclamado trabalho, estreado no último verão na Bienal de Dança de Lyon, que chega esta sexta-feira ao Teatro Municipal do Porto para duas apresentações que não terão como satisfazer as mais de 200 pessoas que estão numa lista à espera de um bilhete, é a mitologia e o recurso à História da Arte que lhe amparam o guião. "Sou um pintor, crio como se pintasse, não consigo fugir a isso", explicou ao JN o artista plástico que se fez coreógrafo, ou híbrido de ilusionista, encenador e cenógrafo, na ressaca de uma récita em Martigues, em França, onde foi ovacionado durante longuíssimos minutos pela plateia que acabara de assistir a uma fusão de quadros vivos de René Magritte, uma das suas mais declaradas influências.
"ela é o rio, a fonte"
Há um touro negro a representar a "masculinidade, o lado da vida que não conseguimos domar" e há uma mulher-luz, uma mulher-água (estrondosa Breanna O"Mara, qual Vénus de Botticelli), a simbolizar a nossa permanente luta contra a escuridão. "Vejo o perigo da besta, mas também vejo a beleza da besta. Compreendo a necessidade de a deter, a luta entre o homem e o animal que somos, mas tenho pena desse nosso permanente desejo de controlo", diz. Por outro lado, "a água é a minha casa, sempre que aquela mulher aparece tudo muda, ela exerce a sua força pela beleza. Tudo nela é atraente, sensual, ela é o rio, a fonte, o renascimento". Não é bíblico, mas também não chega a ser erótico. "A sensualidade e a espiritualidade são a mesma coisa. Não acredito na culpa do corpo. Acredito que a sensualidade é a melhor maneira de abordar a arte e a vida".
Daí a omnipresença da nudez, neste como noutros trabalhos. "A nudez é a essência da vulnerabilidade. Não é possível falar da vida humana sem partir da maneira como nascemos. Nascemos nus, é o que somos. E se queremos aprender alguma coisa sobre nós, ou sobre os outros, é nus que devemos estar".
Mas as imagens deste espetáculo de dança-teatro-performance-luz-música não se esgotam neste duelo simplificado. Há minotauros e mariposas, homens sombra e homens mosquitos, Rembrandt e Vivaldi, bebés a nascer, camas-ratoeiras, portas imaginárias. Há uma sucessão imparável de metáforas e twists. "Sou caótico e sou lento, a minha cabeça nunca pára, parto de elementos e ideias soltas que fazem sentido para mim e depois tento usá-las e uni-las todas. Mas a maior parte das vezes é a própria criação que me diz "já chega" e eu obedeço". É fácil perceber a lista de espera para rever Papaioannou.
Este mestre de ilusões e maestro da composição passou pelo Porto em 2017 e desde então tem corrido o Mundo e o Mundo tem sempre parado, banzado, para o ver, mesmo se ele ignora as expectativas que recaem sobre ele. "Compreendo-as, mas não me esforço para corresponder. O meu esforço vai sempre no sentido de continuar a ser louco e, portanto, livre. Ainda faço tudo da maneira que quero. Sou um homem de sorte".