Registo dos concertos em Coimbra (1968) e Carreço (1980) integra um álbum-livro agora lançado.
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Gravação oficial dos concertos de José Afonso conhecia-se apenas uma, a que deu origem ao mítico álbum duplo gravado no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, a 29 de janeiro de 1983. Até agora. Lançado no início deste mês, "José Afonso ao vivo" recupera dois registos do cantautor em momentos distintos do seu percurso: a 4 de maio de 1980, no Teatro Avenida, em Coimbra, e a 23 de fevereiro de 1980, na Sociedade de Instrução e Recreio de Carreço, em Viana do Castelo.
"Não estava nada à espera de ter acesso a estas gravações. É uma honra inacreditável editar José Afonso", afirma José Moças, responsável da Tradisom, convicto de que "a sorte" lhe bateu à porta ao colocá-lo em contacto com os colecionadores privados que estavam na posse de ambas as gravações. No caso do concerto em Carreço, foi Manuel Mina quem a cedeu de bom grado "para manter vivo o legado de Zeca". Dias depois, numa pesquisa pelo Facebook, Moças teve conhecimento de um concerto no extinto Teatro Avenida que teria sido gravado por Jorge Rino, professor universitário que lhe facultou a bobina.
Obtidos os registos, faltava o último obstáculo para que a edição se concretizasse: a autorização familiar. O que José Moças conseguiu com a promessa de fazer uma edição numerada, não reeditável, que explicasse os contornos de ambos os espetáculos. Uma exigência que foi cumprida graças à investigação levada a cabo pelo jornalista Adelino Gomes. Profusamente ilustrado com fotografias da época, assim como cartazes, recortes de imprensa e correspondência diversa, o texto recorda os contornos que rodearam os espetáculos.
Em 1968, é um José Afonso embrenhado no combate à ditadura que encontramos no concerto que lotou o "Avenida". Acompanhado por Rui Pato na viola e com elementos da PIDE na plateia, magnetiza a audiência com "Menina dos olhos tristes", "Trovas antigas" ou "Natal dos simples", aventurando-se pela primeira vez no cantar alentejano. No final, o público manifesta-se com uma salva de palmas que se prolonga por 15 minutos, dos quais apenas três ficaram registados.
Uma dúzia de anos depois, consumada a revolução, é um José Afonso bem-disposto e dialogante o que se apresenta perante 700 pessoas na sociedade recreativa de Carreço. Se a gravação do concerto coimbrão "era de excelente qualidade", o trabalho desenvolvido foi muito mais profundo. "Sem a tecnologia atual não teria sido possível recuperá-la", afiança José Moças, que tem em curso a digressão "Por terras de Zeca", comemorativo dos seus 90 anos do nascimento.
O mistério dos registos históricos desaparecidos
É um episódio digno de um romance ou de um filme policial, mas de contornos reais: as gravações originais (vulgo "masters") do espólio da Orfeu e Rádio Triunfo encontram-se em parte incerta, suspeitando-se que tenham sido vendidas à revelia durante o processo de insolvência da Movieplay, a editora que resultou da fusão daquelas duas etiquetas. José Afonso e Adriano Correia de Oliveira são apenas dois dos artistas cujos discos integram os referidos catálogos.
Arnaldo Trindade, fundador da Orfeu, fala "num escândalo sem precedentes" e clama por "uma intervenção urgente do Governo". Já José Moças, da Tradisom, lamenta que "não haja discos do Zeca no mercado. Nem nos armazenistas. É como se estivéssemos proibidos de ouvi-lo".
O JN contactou o Ministério da Cultura, que há dois anos, quando o caso foi tornado público, anunciou a abertura de um inquérito. "Para já, não há novidades", disse-nos fonte do gabinete.
"Loucura" na procura já levou boa parte dos quatro mil exemplares
É um livro mas também um disco: "José Afonso ao vivo" reúne um vinil e dois CD com as gravações inéditas de concertos, mas também um texto de 80 páginas sobre o enquadramento histórico, social e cultural de ambos os espetáculos.
Dos quatro mil exemplares numerados, já só resta um número reduzido. "Está a ser um loucura. Não imaginava tal coisa", diz José Moças, da Tradisom, que garante ser "ponto assente" a não reedição do disco.