Sergei Loznitsa apresentou na competição de Cannes “Dois Procuradores”.
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Ao segundo dia, Cannes deu início à corrida pela Palma de Ouro. Sergei Loznitsa, nascido na república da Bielorrússia mas tendo passado grande parte da sua vida na Ucránia, apresentou a sua mais recente incursão pela ficção, com “Dois Procuradores”. O filme passa-se em 1937, segundo a legenda inicial no auge do terror estalinista, mas em entrevista ao JN, a publicar na íntegra quando o filme estrear em Portugal, o realizador referiu que se trata de um problema hoje quase universal, com o totalitarismo a dominar o mundo.
A história, baseada num livro que só viu a luz do dia durante a abertura de Gorbachev e já depois da morte do seu autor, centra-se num jovem procurador que se dirige a uma prisão onde se encontram suspeitos de atentar contra o Estado, na tentativa de saber se a confissão de um dos prisioneiros tinha sido obtida com recurso a tortura. Não podendo revelar como a história acaba, o filme tem como “mensagem” principal que não podemos ser ingénuos na nossa luta pela justiça.
Não podíamos no entanto estar face a Sergei Loznitsa para lhe perguntar o que sentia sobre o facto da estreia mundial do seu filme ocorrer sensivelmente nos mesmos dias em que era suposta haver um encontro entre Zelensky e Putin. O realizador começou por nos dizer que “a guerra não é só um problema da Ucrânia, é um problema da Europa. A Rússia destruiu todos os acordos que tinha na Europa desde 1945, ou mesmo de 1943, com a Conferência de Ialta. Todos nós vivemos agora num vulcão, num mundo muito instável. “
Depois, respondendo diretamente à nossa questão, afirmou: “Não aconteceu nada. Nenhum quer acabar com a guerra. Não estou a ver que queiram. Mas mesmo que fosse só um lado a querer acabar com a guerra, era preciso que houvesse forças capazes de obrigar o outro lado a fazê-lo. Com armamento e vontade de o fazer. Estes jogos vão continuar. Mesmo que por qualquer razão façam algum cessar-fogo, o problema não ficará resolvido.”
Loznitsa terminou, fazendo uma revisão da posição de ambos os lados do conflito. “A Rússia quer continuar a ocupar as regiões que quer para si. Querem construir uma barreira de proteção entre a Federação Russa e o resto da Europa. Já estava no ultimato que fizeram antes da invasão. E qual foi a reação? Nenhuma.” E concluiu: “E a Ucrânia continua com a ideia de recuperar os territórios que foram ocupados. Será possível? Não tenho a certeza.”
A competição incluiu ainda “Sound of Falling”, da germânica Mascha Schilinski, sobre quatro gerações de mulheres habitando numa remota quinta da fronteira, revelando segredos que se vão eternizando naquela família. Uma obra de enorme domínio formal, mas que a realizadora complica de tal maneira na narrativa que o espetador corre o risco de facilmente se perder.
O segundo dia de Cannes viu ainda a abertura de Un Certain Regard e das seções paralelas Quinzena dos Realizadores e Semana da Crítica. Un Certain Regard abriu com
um filme da Tunísia, segunda obra de Erige Sehiri, depois de “Debaixo das Figueiras”, que também passara em Cannes e viria a estrear em Portugal. Agora, a realizadora franco-tunisina apresentou “Promis le Ciel”, retrato das dificuldades de três mulheres da África sub-sahariana que lutam contra a política de emigração na Tunísia. Não bastam boas intenções para fazer um filme, e Sehiri faz aquilo a que ultimamente se assiste bastante, “filmar o guião” sem qualquer ideia de cinema por detrás. E o cinema é uma arte eminentemente visual.
A Quinzena dos Realizadores abriu com “Enzo”, retrato do jovem que dá o t+itulo ao filme, e que apesar de pertencer a uma família de posses da região de Marselha, prefere trabalhar na construção civil, onde vai estabelecer uma relação com um emigrante ucraniano. Um filme correto, que tem uma história trágica por detrás. Antes de morrer, Laurent Cantet, que vencera a primeira Palma de Ouro de França após muitos anos de vazio com “A Turma”, entregou a realização do filme ao seu amigo Robin Campillo. Uma história de amor de cinema num filme que nos conta uma história de amor.
Excelente, como já fora “Recreio”, que estreou em Portugal, foi a abertura da Semana da Crítica, com o novo filme da belga Laura Wandel, “O Interesse de Adam”. O filme passa-se inteiramente na unidade pediátrica de um hospital, onde uma médica tenta desesperadamente salvar uma criança de quatro anos de uma mãe possessiva e que o está a levar para uma situação médica muito complicada. Um exercício notável de cinema e um duelo fabuloso de atrizes, entre a veterana Léa Drucker e a jovem Annamaria Vartolomei. Cannes tem Cinema.