Escritor austríaco Robert Musil busca a compreensão da realidade e não a imposição de um ponto de vista. Relógio D'Água edita os seus ensaios escritos entre 1911 e 1937.
Corpo do artigo
Num tempo dominado pelo maniqueísmo e pela necessidade, potenciada pelas redes sociais, de emitir rapidamente, a propósito de tudo, uma “opinião”, invariavelmente fechada e hostil a tudo o que a contraria, e quase sempre inscrita num campo ideológico bem definido, é importante regressar a escritores como Robert Musil (1880-1942), radicalmente independentes e movidos por um desejo de compreensão da realidade, menos interessados no posicionamento do que na prospeção.
A edição recente da Relógio D’Água colige uma série de ensaios do autor de “O homem sem qualidades” escritos entre 1911 e 1937, quase todos publicados, exceto os que coincidem com a ascensão do nacional-socialismo, período particularmente difícil para a independência intelectual.
A forma do ensaio, definida pelo autor austríaco como “configuração única e imutável que a vida interior de uma pessoa adquire num pensamento decisivo”, é inseparável da sua produção romanesca, onde a trama surge entrelaçada com um processo de permanente reflexão. Como na sua obra-prima inacabada, onde “procede à reconstrução e desconstrução da situação ideológica da época antes da II Guerra Mundial”, escreve António Sousa Ribeiro, tradutor e prefaciador do volume.
Com formação ampla em ciências e humanidades, o escritor procura o equilíbrio entre “exatidão” e “alma”, inscrevendo-se numa tradição filosófica “heterodoxa, anti-sistemática, prismática, densamente auto-reflexiva, atenta, por definição, aos sinais do contemporâneo” – que liga ao precursor desta forma discursiva experimental: Michel de Montaigne.
A escrita de Musil nunca é veículo de um programa ideológico pré-estabelecido, é um “pensamento-em-ação”, que produz ideias e não opiniões.
Dos dilemas austríacos na passagem de império a estado-satélite da Alemanha, passando por considerações estéticas – “A arte, quando tem valor, mostra coisas que ainda poucos viram. Vive para conquistar, não para pacificar” – e por ricas análises a meios e tendências literárias, o seu olhar fino e complexo detém-se ainda sobre temas como a moda, o desporto ou as convenções sociais. O traço comum destes textos é o da recusa absoluta por caminhos fáceis.