O realizador francês Eric Lartigau fala-nos de “Finalmente o verão”, já nas salas de cinema.
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Começou por ser uma novela gráfica, da autoria das primas Jillian e Mariko Tamaki. Agora é um filme, assinado por Eric Lartigau. A história é a de uma garota que vai passar as férias de verão com a família a Espanha, conhecendo outra jovem, de quem se torna melhor amiga. Depois desse verão, nada será igual para as duas. Gael Garcia Bernal, Marina Fois, Chiara Mastroianni e Angela Molina são os adultos do filme, as duas jovens protagonistas são interpretadas por Rose Pou-Pellicer e Juliette Havelange. O filme já está nas salas e o JN esteve a conversar com o realizador.
Espanha já estava na banda desenhada em que o filme se baseia?
Não. Quando comecei a escrever o guião com a Delphine Gleize já tinha a imagem dos atores na cabeça. A Marina Fois e o Gael Garcia Bernal foram evidentes. A Chiara Mastroianni também, a Angela Molina um pouco mais tarde. Queria também um paralelo entre duas línguas. Para uma criança da idade das personagens é muito importante, cada palavra começa a ser digerida, a perda da inocência chega, passa-se a outra coisa. Deixa de se ser uma criança. E como o português ou o italiano, o espanhol é uma íngua como que cantada. Uma língua quente, sexy.
Este universo infantil no feminino era algo que o intrigava há algum tempo?
No feminino, sim, mas diria que tanto no feminino como no masculino. A banda desenhada em que nos inspirámos era japonesa e tinha duas personagens femininas. Os pais estavam mais ausentes e dissemo-nos que era preciso conhecê-los melhor. Para perceber também melhor de onde é que vinham aquelas crianças. O universo dos pais era também importante, para observar melhor as crianças.
No filme, são as crianças que resolvem as questões dos adultos. São elas os adultos, enquanto estes parecem crianças…
Às vezes isso acontece. Se virmos bem o que as crianças dizem, são tão maduras como os pais. Sobretudo nesta nova geração. Vejo isso com os meus filhos e os filhos das pessoas que conheço. Crescem muito rapidamente. As frases que dizem no filme ouvimo-las nas crianças da idade delas. As crianças de hoje exprimem o que sentem muito melhor do que nós fazíamos antes. Éramos mais calados, hoje dizem tudo, é incrível. Há um grande fosso entre as últimas gerações. E nem falo da geração dos meus avós, que era ainda mais complicada.
Como é que encontrou as duas jovens para interpretar as personagens principais?
Queria duas crianças que fossem completamente diferentes. A química entre elas faz-se de uma forma mágica. São encontros que se têm na vida. E no cinema. Encontrámo-las no Facebook. A diretora de casting pôs um anúncio e logo no primeiro dia tivemos 1500 respostas. E chegámos às 4000. O poder das redes sociais é colossal.
Como é que geriram toda essa quantidade de propostas?
Utilizámos vários filtros. Eu tinha um determinado perfil muito preciso para cada uma. Queria silhuetas e sobretudo personalidades muito precisas. Fomos encontrando-as por zoom, porque estávamos em pleno covid, e juntei-as de imediato. Depois vieram a Paris, queria conhecê-las, saber do que gostavam, como era a vida delas. Filmámos já há dois anos e ainda hoje falam quase todos os dias por whatsapp. Fizemos um grupo os três e trocamos mensagens e fotografias regularmente. Elas ficaram muito amigas.
Elas gostaram de se ver no ecrã?
É muito engraçado. Rose, a heroína, punha a mão à frente da cara muitas vezes e não queria ouvir-se. A Juliette já tinha feito uma curta-metragem. Mas no fim da projeção estavam muito divertidas. A Rose está em todas as cenas, de princípio a fim. Perguntei-lhe se estava tudo bem, disse só que sim e passou a outra coisa. Tinha o irmão ao lado e começaram a falar de outras coisas. Achei isso admirável. São as duas muito desligadas.
E durante a rodagem? Estavam rodeadas de atores e atrizes consagrados, mesmo que talvez não os conhecessem. Ficaram impressionadas com a máquina do cinema?
A rodagem passou-se de uma forma muito alegre. Elas são muito inteligentes. Tive a sorte de encontrar duas miúdas muito inteligentes. As conversas delas não são de miúdas do mundo Disney. Falam da vida. Os grandes atores com quem elas trabalharam, são sempre muito curiosos em relação ao outro. Comunicavam todos entre eles de uma forma muito natural. E respeitavam-se todos muito. Entenderam-se todos muito bem. Com a Angela Molina, que faz de avó, tiveram uma relação muito doce, muito bela, muito pura.
Uma rodagem toda em exteriores e fora de Paris, onde no final do dia cada um vai para sua casa, deve ter também favorecido a criação de um ambiente mais familiar.
Gosto imenso de filmar fora de Paris, onde no fim do dia cada um regressa a casa e aos seus problemas quotidianos. Estivemos sempre juntos, durante dez ou onze semanas. Isso cria um ambiente. Também tinha pedido à equipa da câmara para não gritar, porque estávamos a trabalhar com crianças. Não são feitas de vidro, mas eram realmente muito pequenas. E tudo se passou muito calmamente. E de forma natural. Elas adoravam quando lhes dava indicações, gostavam muito de experimentar coisas diferentes.
Do ponto de vista visual, foi difícil a transposição do universo da banda desenhada para o cinema?
O grande desafio foi não trair a obra original. De qualquer forma as histórias acabam por ser diferentes, quando se faz uma adaptação. Já o tinha feito, mas era um romance, e o autor, quando saiu da sala de projeção, abraçou-me, dizendo que não era o livro dele, mas sendo ao mesmo tempo exatamente o livro dele. A trama era a mesma, mas criando um universo e ações completamente diferentes. Cada um fica com a sua obra. Foi o que tentámos aqui.
Quais são as principais diferenças?
A novela gráfica é mais negra. As personagens dos pais, como disse, estão mais distantes, quase em terceiro plano. Trouxemo-los para mais perto. Os outros adolescentes também. Quisemos misturar todos os tipos de personagens.
As duas protagonistas discutem numa certa altura, mas fazem as pazes. É a principal mensagem do filme, para os jovens de hoje?
Lembro-me de ter feito uma projeção em Toulouse onde havia cinco centenas de jovens. Foi impressionante. E houve miúdos que contaram episódios semelhantes que se tinham passado com eles, no recreio da escola. É uma idade onde as emoções são tão extremas, passa-se de um riso a um choro, o corpo muda, o corpo cresce. É tudo impressionante, naquelas idades.
Ao fazer este filme, lembrou-se de algum verão que tenha mudado a sua vida quando era pequeno?
Há uma cena no filme que eu vivi, a do afogamento. Vivi-a com a minha mãe e com os meus primos. Estávamos num barco de plástico, à beira-mar. A minha mãe tinha água pelos joelhos, eu estava no barco com os meus primos e de repente a corrente levou-nos para o largo. A minha mãe conseguiu agarrar o barco, mas uma onda virou-o e os meus dois primos não sabiam nadar. Agarraram-se à minha mãe, para tentar salvar-se. A minha mãe não consegui dormir durante alguns dias, com as dores. Podíamos ter morrido todos. Tinha dez anos, os meus primos um pouco mais velhos. Mas vi a morte.