"Sísifo" é a peça que marca o regresso do cocriador da Porta dos Fundos a Portugal. Uma mini tour com um monólogo inteligente, ousado e crítico, para assistir em várias salas.
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Na mitologia grega, Sísifo é um personagem condenado a empurrar eternamente uma pedra até ao cimo de uma montanha, para sempre a ver cair. Em Albert Camus, o Mito de Sísifo é um ensaio sobre encontrar um sentido neste ciclo sufocante do quotidiano. Para Gregório Duvivier, coautor e intérprete do novo monólogo que traz de volta o ator e ensaísta a Portugal, Sísifo é o primeiro gif da história - e somos um pouco todos nós.
A ideia base deste Sísifo-gif, deste ensaio sobre a eternidade de ciclos que consegue ser crítico mas positivo, veio de Vinícius Calderoni, coautor e diretor da peça; e de Duvivier, que também escreve e interpreta o monólogo que liga a mitologia grega aos absurdos do quotidiano, do mundo digital e da política.
Em "Sísifo", num palco o ator repete o mesmo movimento: caminha de um lado ao outro, regressando a cada cena ao ponto inicial. Em 60 sketches, onde cabem muitas personagens, o texto vai da comédia à tragédia, passando pela poesia, drama, história; ou a inteligência artificial, o contexto social e político, a humanidade, fake news, influenciadores. As apresentações acontecem a 7 de dezembro no CCB em Lisboa, 8 no Sá da Bandeira no Porto, 9 no Convento de São Francisco em Coimbra e a 10 de dezembro no Centro de Artes de Águeda - e são motivo para uma conversa com o cocriador da Porta dos Fundos.
Sobre Sísifo, essa personagem da mitologia que carrega a pedra e ela rola. Dizia o Vinicius [Calderoni,] que ele é o primeiro gif da história?
Exatamente, partiu daí a vontade de fazer a peça. Dessa ideia de que o mito grego falava assim um pouco de um gif, de um eterno retorno, de um ciclo; que é também o ciclo dos memes não é? Os memes são usados o tempo todo de forma diferente e renascem com um novo significado, então usamos o Sísifo para falar dessa condição contemporânea. De todos nós muito presos num ciclo, no dia-a-dia. Que hoje é também um ciclo do feed e da timeline.
Mas nos gifs e no Sísifo não há saída - então não há saída, estamos presos?
Não há, não. Assim como os dias da vida, os dias nascem para depois morrerem e o sol para se pôr. Estamos presos em mil ciclos - a vida mesmo, nascer e morrer, enfim: os ciclos são inevitáveis, não conseguimos fugir deles. Agora é importante, claro, no campo da política e da ação humana, nós preenchermos essa subida com significado, entender que tem alguma graça nesse percurso, tentar fazer dele algo espetacular - ou pelo menos divertido ou surpreendente, e executar o percurso das mais diversas formas. E os atores dão um pouco essa chave, porque um ator é um Sísifo, alguém que faz uma peça todos os dias. Quando acaba a peça de teatro ele não completou nada, a peça rodou ladeira baixo e só quem viu usufruiu, então no dia seguinte ele precisa rolar a peça ladeira acima, mas ele consegue extrair prazer disso. Acho que é uma boa lição para todos, tentarmos entender esse percurso da pedra como algo prazeroso. E entender que há beleza nos ciclos. O trabalho braçal, o do Sísifo a subir a carregar a pedra, é algo que muitas vezes é o próprio sentido - a pedra não importa tanto quanto a subida, na verdade.
O monólogo é um dos trabalhos mais desafiantes para um ator. O que podemos esperar em palco - tem as 60 mini histórias que vai contando, tem humor, temas para refletir, onde nos leva com essa reflexão?
Sim, tem um pouco de sketchs claro, são várias histórias, mas que se vão costurando. O que eu gosto nessa narrativa que é a cara do Vinicius Calderoni, esse autor que eu adoro e que traz um pouco de uma linguagem da internet para o teatro, no sentido que é uma narrativa entrecortada, um teatro que dialoga com outros formatos, essa narrativa que lembra a Porta dos Fundos mas não só: há momentos de poesia, de lirismo, cómicos e momentos em que invoca as tragédias brasileiras, um caráter de rapsódia. Acho que o teatro é isso, um lugar onde se pode falar de tudo, criar qualquer coisa, contar qualquer história.
E também ser uma força interventiva, política até.
Claro. Ele é imediatamente político só pelo facto de juntar 500 pessoas num mesmo lugar. Colocar pessoas num lugar sem olhar para um celular e olhando para a mesma pessoa hoje é político, revolucionário. Porque hoje em dia as pessoas têm acesso a uma realidade, uma narrativa, no seu celular, que o algoritmo põe envelopada para elas, então para mim o teatro é o contrário disso; um lugar em que todos assistem a uma narrativa compartilhada e isso é a mágica.
É ator, escritor, humorista, ativista... Com tantas facetas pensa-se: tem formação em teatro, ou alguma em psicologia, filosofia?
Não, na verdade só em letras. Nunca estudei por exemplo jornalismo que é algo que agora faço um pouco, nem formalmente atuação. Fiz muito teatro desde pequeno mas sempre amador, informal, fui fazendo cursos. Sempre gostei de filosofia mas nunca estudei muito nada a fundo. Sou um diletante mesmo, sempre gostei de estudar de forma amadora, mesmo em criança nunca tive muita autodisciplina.
Volta a Portugal vindo de um Brasil um pouco diferente. Como encara estas mudanças?
Eu estou... otimismo é exagero, porque conhecendo o Brasil já sabemos que não dá para esperar demais - porque há forças conservadoras o tempo todo a lutar contra a democracia. A história do Brasil é essa; forças, armadas inclusive, a lutar contra a vontade popular e é isso que estamos a ver agora. Agora o Lula é um conciliador, ele sabe conciliar vontades até de pessoas que o odeiam, está acostumado a lidar com uma oposição muito raivosa, por isso vamos ver.
E Portugal, onde tem vindo tanto, é já como uma segunda casa para si?
É, Portugal é já a "casa da avó". É o que parece, sobretudo para quem vem do Rio de Janeiro, ainda mais onde eu cresci. O bairro das Laranjeiras, Santa Teresa, são bairros onde eu reconheço muito Portugal, e vice-versa. Então eu vou a Portugal e parece aquela casa da avó, ou dos primos, onde voltamos, onde temos muito em comum - e ao mesmo tempo tão diferente. E é curioso porque o Portugal que a maioria do Brasil conhece é o anterior a '74. Quando o brasileiro que não tem muito contacto com Portugal pensa no país, ele pensa no fado, numa religiosidade, em Fátima, num Portugal que eu acho que mudou muito. O Portugal que eu conheço é mais laico - mais que o Brasil -, muito democrático, tem uma população muito democratizada. E muito moderno, de vanguarda mesmo, com uma arte e arquitetura contemporâneas espetaculares. Então é curioso que só quando fui a Portugal pela primeira vez me deparei com esse pais tão moderno, para mim de vanguarda mesmo, e é isso: por um lado é a casa da avó, por outro é na verdade a casa dos filhos, dos netos - porque nós [Brasil] é que nos tornámos na avó conservadora.
Quando terminar esta digressão, o que vem a seguir?
Quero fazer uma peça nova, para estrear em Portugal. Recebi já um convite, o Tivoli faz 100 anos, é um teatro que eu adoro, que eu visito sempre. Então chamaram-me e vou escrever e estou com este convite, e pretexto maravilhoso, para voltar a Portugal.