Hermeto Pascoal, conhecido como O Bruxo dos Sons, toca esta quarta-feira na Casa da Música, no Porto. O compositor, arranjador e multi-instrumentista brasileiro, de 85 anos, é detentor de dois Grammys Latino e dois Doutoramento Honoris Causa. Também garante que é o músico vivo com mais composições escritas em todo o Mundo. Com o grupo que o acompanha desde o final dos anos 1970, toca acordeão, flauta, piano, saxofone e diversos outros instrumentos musicais e objetos quotidianos, usando a Natureza como inspiração. Tocou nos festivais de jazz mais importantes do planeta e com nomes como Miles Davis, Chick Corea, John McLaughlin, Stan Getz, Elis Regina e tantos outros. Falou ao "Jornal de Notícias" na véspera do seu concerto no Porto, com uma alegria e um otimismo únicos.
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Ao fim destes anos todos, o que é para si a música?
A música é a minha vida, é o único adjetivo que eu uso. A música para mim é tudo na minha vida.
Qual é o gatilho criativo para fazer música?
Eu nasci música, eu sou 100% intuitivo, eu crio sem premeditação, eu crio com muita emoção e com o dom que Deus me deu.
Há algum objeto do qual não tenha conseguido extrair música?
Não, nem morrendo eu deixo. Na hora que o meu corpo se acabar, eu vou voltar novamente para a minha terra, o Universo onde o meu espírito vive e vai continuar fazendo música para os outros Universos.
Em 2008 deixou a sua música livre, resolveu partilhá-la sem cobrar por isso. Alguma vez se arrependeu dessa decisão?
Justamente isso, eu quero que a minha música seja livre para todos. Não é as pessoas quererem uma música minha e não terem como pagar, não terem condições. Isso para mim é um sofrimento; ou melhor, era. O meu produtor recebeu muitos pedidos perguntando porque não podiam pagar 1000 reais para ter a minha música e tudo isso me comoveu muito. Nunca quis cobrar. Já faz quase 20 anos que não cobro. O que não podem é vender a minha música; se venderem eu cobro.
Os Estados Unidos da América foi o país que mais o acolheu. Você é Doutor Honoris Causa pelo New England Conservatory, de Boston. Foi esse o maior elogio que recebeu?
Aos Estados Unidos eu fui em 1968, quando eles escutaram a minha música e viram como eu escrevia. Eu ainda estava aprendendo a escrever a teoria e os arranjos, e lá mesmo fui convidado para ir para lá morar e levar a minha família com tudo pago: casa, dois carros para a família ir para a escola e tudo o que eu quisesse, e todo o mês 250 mil dólares. Naquele tempo, 1968, era um dinheirinho bom. Mas para mim o dinheiro não vale nada perto da música. Nunca saí do Brasil porque acho que estando lá é onde vou estar mais forte no Mundo. Eu nasci e Deus me mandou para o Brasil; estou cumprindo tudo que tinha para cumprir no Brasil.
Mas gostou de receber essa distinção?
Foi muito lindo o doutorado, foi das coisas mais lindas da minha vida e logo de um país como os Estados Unidos. Eu amo todos os países, mas os EUA foram o primeiro país a começar essa ideia: deram-me um prémio e daí começou todo o Mundo a dar-me prémios. Fico muito feliz com isso. Tenho muito que agradecer aos EUA pois sempre prestigiaram a minha música.
Que notação é essa que tem escrita no chapéu?
É uma música, como se estivesse num papel. Escrevo sempre em objetos, respeitando o desenho de outra pessoa. É muita inspiração, muita criatividade. Não tem premeditação, tem inspiração. Isto [a notação no chapéu] é do meu repertório, daquele que eu toco no palco. Se você for ver o show, vai ver.
Gosta dessa improvisação ou prefere a teoria?
Como sou 100% intuitivo improviso muito, mas a improvisação pode ser até escrita musical. A teoria eu uso, sim, escrevendo nos papéis. Sou o músico que tem mais música escrita no Mundo. Mais de 30 mil músicas escritas. Sem orgulho, mas com muita alegria e prazer.
Isso torna a compulsão de criar num ato diário?
Sim, a música é a minha respiração. Avé Maria. Se a música me falhasse eu morria, o meu corpo morreria.
Ainda tem muita música escrita que não está gravada?
Sim, nossa! A minha grande alegria é poder deixá-la para o Mundo. Estou deixando um monte de música, nem tenho ideia. Se fosse fazer o balanço seriam muito mais de 20 mil. Fico feliz. Eu penso em tudo o que faço, no povo e no Mundo inteiro. A inspiração vem direta do Universo para mim. O mundo inteiro, graças a Deus, neste tempo já conhece a minha música.
Ou seja, estes tempos modernos também ajudaram a música a circular mais depressa?
Sim. Por exemplo, comecei o meu trabalho na minha terra e quando mudei para outra cidade sempre tive a escola. E na escola, com as crianças, quando a gente vê uma criança não pense que o espírito dela é pequenininho, não. O espírito de uma criança pode sair agora para um adulto. O espírito não tem idade. É por isso que eu chamo a música que eu faço de Universal. Tem essa inspiração espiritual sem premeditação.
Os músicos brasileiros queixam-se muito do presidente e da pandemia... Esses dois fatores mudaram a sua música?
Uma vez fizeram uma reunião no Rio de Janeiro, no [espaço cultural] Circo Voador e me convidaram pessoalmente para ser Presidente da República.
E porque não?
Eu não quis, não seria um bom Presidente, não. Só se todo o Mundo tocasse [risos]. Não tinha tempo para tomar conta do Brasil de jeito nenhum. Eu sei que o povo me ama com essa música que eu faço tanto como se eu fosse Presidente da República.
E quanto à pandemia?
Deus não manda nada ruim para a Terra, isto é um alerta. Para quem é um espiritualista e músico como eu está sabendo o que aconteceu. O Mundo estaria muito pior se Deus não tivesse mandado esse freio para as pessoas se acordarem mais, se gostarem mais, se abraçarem mais. Aí vai ter o tempo, tudo vai-se limpar e a gente se vai abraçar com mais vontade. Deus deu o castiguinho: "Vocês vão ficar sem se abraçar mesmo para ficarem com vontade de se abraçar". O que Deus quer é que as pessoas se abracem espiritualmente, mesmo que seja com o físico. Isto sem religiosidade.
Ou seja como uma música, foi preciso uma pausa.
Uma não, várias músicas maravilhosas.
Deu a cara por várias campanhas em prol de pessoas que têm albinismo. Esta ainda é uma questão no Brasil?
Não tenho feito mais. A ideia era fazer sensacionalismo e vender jornal e revista e esse não é o meu doce. Quem é fiel a Deus que é albino, que é preto, que é amarelo, que é aleijado, está sempre pela lei de Deus e tem de estar alegre.
É então sempre alegre?
Eu era criança e muitas crianças me xingavam. Diziam, "ó sarará!" por causa da minha vista, diziam "ó instalação trocada!". Sempre achei bonito os meus olhos balançando. Eu nunca fui, mas conheci colegas albinos que foram ao médico, foram operados e ficaram ainda pior porque não viam nem de um jeito, nem de outro. Eu enxergo muito bem, muitas coisas que pessoas comuns não enxergam por causa da espiritualidade, musicalidade e vontade de viver. Não me quero vangloriar, mas nas escolas as meninas mais bonitas gostavam de mim, namorava muito e era muito querido pelas meninas bonitas. Que sempre me acharam mais bonito. Por causa disso, os que se achavam certos, sem problemas, ficavam com inveja de mim. Quando eu passava abraçado à menina bonita eles diziam, "ó instalação trocada, ó cego!". Aí a menina vinha e me beijava sem eu dizer nada.
Sempre o amor presente.
O amor quando não é escolhido, quando é criativo, sincero, é maravilhoso. Aquele amor que dizem que não acaba é aquele que vai acabar logo. O amor não precisa de ficar num lugar preso. A Igreja inventou o casamento e o casamento é prisão para o ser humano. Não digo que os casais não vivem: a minha mãe e o meu pai viveram 60 e tal anos juntos, os meus filhos e a minha esposa que faleceu com 60 e poucos anos, não é à toa que eles foram embora felizes também. Por tudo o que fizeram na Terra. A vida só é boa se você colaborar com ela, sempre lembrando o corpo, o meu Hermeto. Mas o meu espírito, quem sabe o nome é Deus.
E quanto ao espetáculo de hoje?
Vamos fazer um show muito bonito, tem de vir ver.