A cineasta francesa Lise Akoka, uma das realizadoras de “Os Piores”, fala do filme, já em exibição nos cinemas portugueses.
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Duas realizadoras estreantes na longa-metragem, um bando de miúdos e miúdas sem experiência de representação, um bairro problemático do norte de França. Um grande desejo de cinema torna “Os Piores”, sobre o processo de casting e jovens para um filme, uma das obras mais enérgicas, honestas e reveladoras do cinema francês mais recente. Cm estreia e prémio em Cannes e nomeações nos Césars, o filme tem feito um bom percurso de festivais e chega agora às nossas salas. Lise Akoka, uma das realizadoras fala-nos sobre o filme que corealizou com Romane Gueret.
O vosso filme tem uma estrutura muito particular. De onde veio a ideia de fazer um filme assim?
Eu e a Romane conhecemo-nos há alguns anos a fazer casting de jovens para um filme. Eu era diretora de casting na altura e fomos enviadas para o norte de França, para encontrar alguns jovens atores para um filme. Foi ao conhecê-los que tivemos a ideia de escrever uma curta-metragem, chamada “Chasse Royale. E ”Os Piores” transformou-se na longa-metragem dessa curta-metragem.
Qual era a história dessa curta?
Falava já da vida de uma jovem de um bairro desfavorecido no norte de França, escolhida num casting selvagem para fazer um primeiro filme de um realizador parisiense. Quisemos então fazer qualquer coisa com o que estávamos a viver. Além de diretora de casting, também acompanhava de crianças durante rodagens. Colocava-me bastantes questões éticas e morais, sobre qual a minha responsabilidade para com aqueles jovens. Sobre o que o cinema lhes prometia e que nem sempre se cumpre. O cinema introduzia-se na vida deles, de forma brutal e voltava a sair da mesma forma.
As crianças que vemos no vosso filme já as conheciam ou houve todo um outro processo de casting?
Houve um outro grande processo de casting, que se desenrolou ao longo de um ano. Encontrámos perto de um milhar de crianças para escolher os nossos intérpretes. Quando o processo de escrita começou partimos para o norte de França, onde vimos uma centena de crianças, para inspirar as personagens e a história do filme. Quando filmámos, já tinham todas crescido. Por isso fizemos depois esse casting, para encontrar as crianças que se aproximavam mais das personagens que tínhamos escrito.
Porquê essa região em particular, foi fruto das circunstâncias ou há razões mais pessoais por detrás dessa escolha?
Foi fruto do acaso, porque foi para lá que eu e a Romane fomos enviadas para fazer o casting daquela longa-metragem de que lhe falava. Ficámos fascinadas pelo que descobrimos naquele bairro desfavorecido que se chama Chasse Royale, Pela grande precariedade, no oposto do que nós vivíamos em Paris Ficámos chocadas com o que encontrámos, mas também maravilhadas pela personalidade de tantas das crianças que conhecemos. Pela solidariedade que reinava no bairro, pela forma calorosa como fomos acolhidas. E pelo fosso social entre os adultos do cinema que chegavam ao bairro.
Já havia então toda essa ligação aquela região…
Foi com naturalidade que quisemos lá voltar e inscrever lá a nossa história. Depois talvez haja razões mais psicanalíticas e inconscientes A minha mãe vive não muito longe, num bairro também isolado e há sem dúvida algumas razões mais íntimas que nos levaram lá mas de início foi mesmo fruto do acaso.
Normalmente quando se fala destes bairros sublinha-se sobretudo o lado mais marginal e perigoso, mas o vosso filme dá sinais de uma certa esperança…
Não é por falarmos de miséria social que não podíamos fazer um filme terno e com esperança, como diz. Também tivemos vontade de mostrar o que achámos de belo naquele bairro Como a beleza daquelas crianças, a energia deles, a inteligência e o humor, a sensibilidade e sobretudo o talento deles. O filme também fala disso, dos artistas que se podem esconder por detrás daquelas crianças, a quem nada indicava que podiam ter um futuro artístico.
Precisamente, em que medida é que o cinema pode mudar a vida das crianças que filmaram?
Depende muito. No nosso filme seguimos o itinerário de quatro crianças. Nem todas vão beneficiar desta experiência de cinema. Mas uma das jovens foi nomeada para o César de Melhor Esperança Feminina, já entrou em outros filmes, tem um agente e uma carreira que se abre à frente dela. O nosso filme mudou-lhe a vida, o que é magnífico de se ver. Ela está muito feliz e vive tudo isto com uma alegria permanente. Sim, o cinema pode mudar a vida destas crianças, mas não de todas, claro. Também não quisemos fazer um filme maniqueísta.
Qual foi a reação deles ao verem-se no filme?
A primeira projeção foi muito emotiva e muito agitada também. Não houve aquele silêncio religioso das salas de cinema, estavam sempre a comentar o que se passava e a recordar-se da rodagem. Uma das miúdas ficou fascinada pela imagem dela no ecrã, pela sua beleza, que dizia ver pela primeira vez, um outro miúdo ficou pouco à vontade, fechava os olhos sempre que se via no ecrã. Mas no geral foi um momento de alegria e de emoção coletivas. Os pais também estavam muito emocionados e orgulhosos do que os filhos tinham feito.
Como é que divide o trabalho com a Romane Gueret?
Não há uma divisão clara, não temos tarefas determinadas para cada uma, fazemos tudo juntas. Mas é verdade que temos domínios em que cada uma de nós se sente mais à vontade. A Romane na realização, porque tinha mais experiência de plateau e eu mais na direção de atores. Eu tenho uma formação de atriz e de diretora de casting. Mas nunca nos ausentamos por completo do trabalho da outra.
Primeiro filme de longa-metragem, primeiro filme em Cannes, prémio de Un Certain Regard. A um ano de distância, que memórias guarda desses momentos?
Quando vi este ano imagens do Festival de Cannes fiquei um pouco nostálgica. São momentos irrepetíveis, mesmo que um dia façamos outro filme que vá a Cannes. Foi a primeira vez para nós e para todas aquelas crianças. E para todas as pessoas que nos acompanharam, a nossa equipa era muito jovem. Foi muito intenso. Foi uma grande surpresa para nós quando soubemos que tínhamos sido selecionados. Pareceu-me algo de completamente louco. E quando tivemos o prémio ainda mais. Depois, os Césars e as viagens que fizemos com o filme, foi alucinante.
Tudo isso representa uma responsabilidade para o próximo filme.
Há uma pressão, é verdade. Houve uma grande alegria, mas também um enorme stress, imensas solicitações. Mas fez-nos bem, para entrar numa nova fase de criação. Vamos tentar estar à altura das expetativas que depositam em nós. Estamos a escrever o prolongamento de uma série web que realizámos para o canal Arte.